Iluminações em Serralves

A comemorar 25 anos de carreira, Ney Matogrosso revisita as origens: ao recorrer a autores desconhecidos, que compuseram os temas do seu último disco "Olhos de Farol", e ao recuperar músicas do tempo em que pertencia ao grupo que o lançou: Secos & Molhados. Hora de meia de um espectáculo cheio de energia e exuberância. "O Coliseu vai vibrar, vai incendiar", promete o seu empresário.

O programa de dança e música complementar à exposição "Circa 1968", actualmente patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS), no Porto, não podia ter começado de melhor maneira. É que as prestações de Simone Forti, Charlemagne Palestine e Emmanuelle Huynh-Thanh-Loan constituiram outros tantos momentos de exaltação do corpo e da vida inconformistas. As improvisações invadiram os espaços da fundação portuense, possibilitando, assim, uma reinvenção quer dos lugares, quer dos movimentos e sons construídos há mais de três décadas. Como afirmava Palestine no decurso de "Illuminations", uma peça para som e movimento realizada em colaboração com Forti: "Isto não é História; isto é o presente".O ciclo iniciou-se na quinta-feira com um concerto pelo pianista norte-americano Charlemagne Palestine. Enquanto esperava para entrar no MACS, o público ouvia um som contínuo que, por vezes, era interrompido por uma espécie de encantação vocal. Já no interior do edifício, os espectadores eram confrontados com uma situação invulgar: o músico passeava informalmente pelas salas com um copo de conhaque. Havia quem avançasse com a hipótese de o seguir, vendo na atitude do intérprete uma crítica ao formalismo da assistência, que, entretanto, se reunia em torno de um piano literalmente rodeado de animais de peluche. Palestine, por seu lado, continuava o seu périplo, que só terminou no instante em que iniciou uma prestação percorrida pela energia extraída a partir da sua particular técnica pianística: o "strumming". A "performance" terminou com o compositor a passear entre o público com uma aparelhagem que emitia um fado sobre a saudade dos velhos tempos.No dia seguinte, no mesmo espaço, aconteceu "Illuminations", um diálogo entre o som de Palestine e o equilíbrio de Forti, um dos nomes seminais da dança pós-moderna. Tal como no dia anterior, o pianista fez-se acompanhar dos seus inseparáveis conhaque - do qual extraía inesperadas notas - e peluches. Um dos momentos mais intensos do espectáculo foi mesmo quando o músico e a coreógrafa, com os bonecos nas mãos - um elefante, ele, um coelho, ela -, conversaram através de onomatopeias. À notável liberdade de expressão e de movimentos de Forti respondeu Palestine com uma corrida desenfreada através das salas do MACS, uma forma de celebrar, uma vez mais, a vitalidade criativa em oposição ao estatismo dos objectos museológicos. "Slant Board" e "Huddle" - duas das "dance constructions" criadas por Forti a partir de 1961, ano em que La Monte Young pediu à coreógrafa para organizar uma noite num sótão de Chambers Street, em Nova Iorque, onde tinham lugar uma série de eventos - foram apresentadas anteontem no ténis da Fundação de Serralves. A primeira situação é realizada sobre uma rampa de madeira com uma inclinação de 45 graus. Do topo do objecto saem cordas, que se prolongam praticamente até ao solo. A peça, escreve a criadora, "começa quando três ou possivelmente quatro pessoas se colocam na rampa, tendo previamente recebido instruções para se moverem constantemente entre o topo e o fundo bem como de lado a lado da plataforma, usando apenas as cordas". O outro trabalho, "Huddle", é um divertido exercício que exige a participação de seis ou sete pessoas. Os intervenientes formam um amontoado compacto do qual, por vezes, sai uma pessoa que trepa e passa sobre as outras para, depois, voltar a integrar-se no conjunto: "A duração deve ser tal que permita ao público observar, circular à volta do amontoado e aperceber-se do seu comportamento. Dez minutos cumprem o objectivo", assinala Forti.Quem assistiu às "dance constructions" de Forti não pode deixar de fazer associações com "Art in Mind Muscle", a instalação de improvisações criada por Emmanuelle Huynh-Thanh-Loan, criadora já conhecida do público portuense através de "Múa", peça apresentada no Teatro Municipal Rivoli em 1997. Inspirada pela arte conceptual de Joseph Kosuth e pelo minimalismo de Dan Flavin, a coreógrafa construiu um espectáculo intenso a partir de proposições, como "suportar o peso do outro", "executar acções simples" ou "confrontar o papel da luz e da música como agentes". Num percurso iniciado no exterior do MACS, continuado em diversas salas do edifício e terminado novamente ao ar livre, Huynh-Thanh-Loan, Anne-Karine Lescop e Christian Rizzo fizeram dos seus corpos agentes de imagens fragmentadas, velozes, quotidianas - a noite, o acordar, o encontro com o(s) outro(s), etc. - transformando o edifício de Siza Vieira num lugar de inesperados gestos e histórias breves sempre pontuadas pelo sóbrio trabalho de luz de Cathy Olive. No fim da viagem, uma inesperada homenagem a Martha Graham e à dança moderna, aquela que se opõe "à rigidez académica da dança clássica".

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