À procura de Florindaaaaa no jardim do Rapaz de Bronze

A Casa da Música recebe hoje a estreia mundial da ópera baseada no primeiro conto infantil escrito por Sophia de Mello Breyner. Um mundo de magia para deixar os adultos a pensar

a Florinda brinca com o telemóvel enquanto o modelador eléctrico lhe deixa o cabelo cheio de caracóis. A Rosa foi ao bar com a cabeça cheia de pinças e papelotes. Maquilha-se a Orquídea, penteia-se a Tulipa, almoça uma, depois outra, o Rapaz de Bronze põe o fato, o vestido de Florinda está sujo, faltam os rapazes, os minutos passam para lá do previsto, a Rosa diz que os sapatos não funcionam, está tudo "Ó João, Ó João" e João Henriques, o encenador, sossega-os: "Vamos experimentar." Já iam, quando aparece o Gladíolo. Precisa de um cinto para lhe segurar as calças. O camarim está num reboliço, tudo a falar ao mesmo tempo. Henriques acaba com a confusão: "Temos de ir, a orquestra está à espera." A orquestra é o Remix Ensemble e estas flores são parte do elenco da ópera O Rapaz de Bronze, uma adaptação do conto de Sophia de Mello Breyner, com estreia mundial marcada para hoje na Casa da Música, no Porto.Do zero
Já no palco, ensaia-se, uma vez, outra vez e mais outra. Tem de estar tudo perfeito numa ópera feita a partir do zero, onde, ao longo de várias semanas, toda a equipa foi desvendando o que resultava e o que nem por isso. "É uma obra nova, foi tudo feito do início. Estamos todos a descobri-la", observa João Henriques. Vai-se decidindo, por exemplo, se as flores vão estar calçadas ou descalças, se o cabelo de Florinda deve ou não ser uma clave de sol, se a estátua deve ser mesmo uma estátua, um menino ou nada disso. Descobre-se tudo até hoje, na apresentação única da ópera. Depois, quando as luzes se acenderem (pouco, porque a acção decorre durante a noite) e os 15 músicos do Remix Ensemble começarem a tocar sob a orientação do maestro Christoph König, o que interessa é a história de Florinda, a menina que regressa ao jardim do conto de Sophia já adulta, tentando saber se foi verdadeira a experiência vivida na infância. Estamos lá todos, somos todos a Florinda. Adultos, com medo, hesitantes, vamos e não vamos. Florinda foi, empurrada.
As flores chamaram por ela: "Florindaaaaa..." Ela avança, lenta e pesada, como o som do violoncelo que a acompanha sempre, para voltar atrás: "Chamaram-me, tenho de ir". "Chamaram-te para ficar", insiste o Rapaz de Bronze, presidente da Comissão Organizadora do Grande Baile das Flores, que escolheu Florinda para ser a flor da festa. Porque "se as pessoas nas suas festas põem flores nas jarras, as flores nas suas põem nas jarras pessoas". O (re)encontro não é fácil. Perante uma estátua que lhe diz que "a noite é o dia das coisas", Florinda - a meio-soprano Nora Sourozian - fica confusa: "Se é à noite que se vive, então o que é o dia?"
Eduarda Melo interpreta o papel do Rapaz de Bronze. Tem o cabelo com um risco ao lado bem definido, esticado para parecer um rapaz, com toques de spray dourado a condizer com o dourado do fato de estátua. Pesquisou e observou tudo. "O trabalho físico foi muito interessante... todo o trabalho de movimento. Somos cantores líricos mas também somos actores. Fiz uma pesquisa sobre estátuas, mas, sendo um rapaz, achei que não devia ser uma estátua muito rígida. Como rapaz devia ter uma pose mais relaxada. Então observei como os rapazes andam e se comportam", recorda. No fim percebeu-se que a estátua não anda nos livros nem na rua. "Sou um ser mágico, que faz a ligação com a Florinda e com as flores. Trabalho muito em função da Florinda. Tenho de a ajudar a descobrir a sua identidade. A pesquisa ajudou, mas o mais importante da personagem é a magia. É um ser que pertence à memória da Florinda, que é quase como a consciência dela. Estou sempre a construir e a descobrir novas coisas", explica a soprano. Transportar isto para o palco não é fácil. "Porque não é uma coisa real, não é uma coisa que posso ver no dia-a-dia. Só existe na cabeça de todos nós. Existe nos nossos sonhos."
A base de trabalho para esta ópera foi o libreto escrito por José Vieira Mendes. Não se tratou de uma mera adaptação da obra para texto lírico. Nesta versão do primeiro conto infantil escrito por Sophia de Mello Breyner, Florinda cresceu. E isso muda tudo. "A história começa pelo fim, com a Florinda a perguntar se a experiência que teve no jardim foi verdadeira ou não. É uma Florinda adulta que vai à procura de si mesma. Que se tenta libertar da repressão recalcada, porque os adultos lhe disseram que o que tinha acontecido no jardim não era verdade", descreve o encenador. Por isso, em cena, Florinda "confronta-se com medos e memórias para chegar a si mesma". As outras personagens são "agentes que potenciam a reconciliação dela consigo mesma", assegura.
O lado mágico
Na área da composição musical, também se trabalhou a partir daqui. "A base é uma fábula infantil. Mas a principal abordagem foi transformá-la para um público mais alargado. Esta adaptação é algo que vai para lá do mundo das crianças. Essa foi a chave-mestra. Centrámo-nos na vida interior de Florinda", desvenda o compositor, Nuno Côrte-Real. Em termos musicais, o desafio foi "encontrar esse espaço profundo e inquieto da personagem. Foi preciso, como nota o compositor, encontrar "o equilíbrio entre o que é interior, pesado, de adulto, de uma Florinda que não se encontra a si própria, e o lado mágico do Rapaz de Bronze". Isso traduz-se numa música mais pesada e densa para demonstrar a busca interior de Florinda, e sons mais alegres para as flores e para o jardim.
A directriz seguida na encenação foi o "conceito de imobilidade". Foi a partir dele que as outras equipas trabalharam, nomeadamente a figurinista Ana Luena. João Henriques quis que os fatos das flores não tivesse cor. Ana Luena respondeu com vários tons de cinzento. "Cada flor terá um canteiro e a luz dá-lhe a cor respectiva. O figurino dá a forma, o cinzento funciona como ciclorama", descreve o encenador. Depois de pesquisar na Internet, em revistas e em floristas, a figurinista conseguiu inspirar-se para vestir a rosa (Alexandra Moura), o gradíolo (Daniel Norman), a tulipa (Margarida Reis), a orquídea (Ana Barros), a begónia (João Sebastião) e o cravo (Job Tomé). Como o encenador pretendia uma "recriação nada realista", a figurinista partiu da ideia da festa que tem lugar no jardim: "Propus que fossem vestidos de noite - smokings no caso dos homens - inspirados no formato das flores".
Num trabalho onde nada foi deixado ao acaso­ (ainda ontem o elenco passou pelo Jardim Botânico, antiga Quinta do Campo Alegre, em tempos propriedade da família Andresen, na qual Sophia se inspirou para escrever o conto), nem os cabelos escaparam. A tarefa foi entregue a Carlos Almeida e ao salão de hair designers Anjos Urbanos. Há lugar para a criatividade? "Podemos pensar no que se pode fazer em cada personagem, embora estejamos condicionados ao que o encenador quer. Temos de trocar ideias mas a nossa ideia é importante", explica Carlos. A experiência conta, claro. Estica-se, seca-se, puxa-se para cima, para os lados, levanta-se com ganchos, trocam-se os ganchos por molas, ondas para a rosa, volume anos 60 na tulipa, mais de duas horas nisto, toneladas de laca por cima e estão todos prontos para começar.

O Rapaz de Bronze

PORTO Casa da Música, hoje, às 21hDe Nuno Côrte-Real
Libreto de José Vieira Mendes, adaptação do conto de Sophia de Mello Breyner
Direcção Musical, Christoph König
Direcção cénica, João Henriques
Música, Remix Ensemble

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