Casas de banho: o playground da extrema-direita

É o espaço que melhor ilustra o crescimento dos movimentos fundamentalistas e de extrema-direita, pois traz consigo todo um imaginário estereotipante e policialesco das formas de ser e estar no mundo.

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Na última década temos testemunhado o avanço, embora parcial, dos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ em diversos países, incluindo Portugal. Infelizmente esse avanço tem sido acompanhado por um movimento conservador e reacionário que se posiciona contrário a estes progressos sociais e ao fazê-lo promove um discurso antidireitos usando noções como “guerra cultural”, “ideologia de género”, entre outros.

A casa de banho é o espaço que melhor ilustra o crescimento dos movimentos fundamentalistas e de extrema-direita, pois este espaço traz consigo todo um imaginário estereotipante e policialesco das formas de ser e estar no mundo que se traduz numa exigência em termos de identidade e expressão de género que devem coincidir com os moldes socialmente estabelecidos. Assim, o uso das casas de banho por pessoas com identidade de género não binária ou por pessoas trans e travestis se tornou “controverso” e as casas de banho viraram um espaço de disputa, particularmente, dos movimentos de extrema-direita que fazem dele seu novo playground.

Diversos estudos apontam para o impacto negativo que a falta de respeito pela autodeterminação da identidade e expressão de género traz para crianças e adolescentes trans, sobretudo no ambiente escolar. Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 2013 e 2017, 24 estados propuseram leis para restringir o uso de casas de banho com base no sexo biológico. A capa da Time Magazine, em 2016, foi dedicada a esta temática com o título “a batalha dos banheiros”. Em 2019, uma pesquisa revelou que 45% dos estudantes LGBTQIA+ evitavam usar casas de banho escolares e 44% evitavam vestiários porque se sentiam inseguros ou desconfortáveis. Segundo a UNESCO, no âmbito da União Europeia, em 2019, apenas 8% das pessoas entre os 15-24 anos de idade se declararam abertamente LGBTQIA+ na escola, enquanto 43% disseram ter sido alvo de burlas, insultos e ameaçadas na escola por serem LGBTIA+.

Em Portugal há um vasto conjunto de exemplos recentes que ilustram o avanço de discursos e políticas “antigénero”, antitrans”, “anti-LGBT” e da chamada “ideologia de género”, principalmente no âmbito escolar, promovidos por grupos e partidos de extrema-direita. Através de argumentos falazes esses movimentos buscam limitar o acesso a direitos das pessoas LGBTQIA+, como se observa na campanha contra a implementação da lei de autodeterminação de género nas casas de banho das escolas, onde estes grupos valeram-se tanto de ações legais, como o pedido de inconstitucionalidade (alegando que o artigo 12 da lei 38/2018 fomentava uma “particular conceção da identidade de género” e promovia a “ideologia de género”), passando por petições online (“Não queremos que as crianças e jovens sejam obrigados a partilhar os WCs e balneários com pessoas fisicamente do sexo oposto”) e até cartas públicas endossadas por entidades e associações da área de educação e ensino, bem como por médicos e juristas católicos. Há também partidos políticos que usam suas plataformas para fazer campanha contra casas de banho mistas nas escolas, como é o caso do Chega, que convida aos internautas a preencherem um “Formulário de denúncia de WC misto”.

Nenhum dos argumentos usados por esses grupos e partidos políticos de extrema-direita são embasados em evidências científicas, muito pelo contrário, são apelações baseadas em ideias estereotipadas e acima de tudo estigmatizantes de um segmento da população, nomeadamente a população transgênera. Não há evidência empírica que demonstre, por exemplo, que estudantes cisgénero – de escolas que tenham optado por casas de banho mistas, neutras ou multigénero – tenham sofrido situações de violência, discriminação ou bullying ou que, como muitos alegam, tenham se tornado LGBTQIA+ em razão das casas de banho mistas. Porém, há sim evidência documentada do contrário, ou seja, que estudantes LGBTQIA+ têm sofrido violência e discriminação por não ter o acesso às casas de banho e balneários garantido. O Estudo Nacional sobre o Ambiente Escolar – Jovens LGBTI+ de 2018, realizado por ILGA Portugal, demonstra isso e afirma que: “As escolas são, para muitos/as jovens LGBTI+, um ambiente de insegurança e desconforto, onde o insulto e outras atitudes negativas são frequentes. Cerca de um quarto evita frequentar espaços como os balneários, casas de banho ou aulas de Educação Física”.

Embora a lei de autodeterminação de género tenha ficado conhecida como a “lei das casas de banho”, a polêmica permitiu que falássemos deste espaço tão carregado de tabus. As casas de banho são uma necessidade de todos, mas ainda são um espaço inacessível para muitos.

Contudo, dentro desta temática, uma alternativa à desinformação e os discursos de ódio é conhecer iniciativas e projetos que trabalhem estas questões e que possam, eventualmente, ajudar-nos a superar as barreiras culturais e políticas que se utilizam como fundamento para manter vigentes as desigualdades de género. Nessa perspectiva, o primeiro exemplo chama Stalled, nos Estados Unidos, e busca criar casas de banho seguras, sustentáveis ​​e inclusivas independentemente da idade, sexo, raça, religião e deficiência, atuando de forma interdisciplinar e envolvendo áreas como arquitetura, direito, educação. O segundo exemplo se chama Around the Toilet, na Inglaterra, e pesquisa as casas de banho tanto como um espaço de inclusão (i.e. pessoas com deficiência) bem como um espaço de exclusão (i.e. pessoas LGBTQIA+), e o faz em conexão com temas como discriminação, deficiência, religião, arquitetura e design. Esses projetos deixam claro que ainda que para muita gente ir à casa de banho seja um ato trivial e nunca tenham se questionado sobre seu género no caminho de uma casa de banho, para uma parcela da população aceder a este espaço implica antes atravessar (e sobreviver) a um conjunto de interdições e vetos.

Como visto, o debate sobre casas de banho vem de longe e atravessa diferentes países, mas tem em comum o crescimento da extrema-direita. À vista disso, é primordial promover uma educação transformadora que pense tanto o espaço pedagógico como as práticas cotidianas ao interior da escola.

É imprescindível também repensar a segregação das casas de banho não só desde o ponto de vista da arquitetura, mas à luz dos corpos que irão fazer uso desse espaço. Portanto, é preciso repensar as casas de banho, inovar não só desde a forma como abordamos a temática – como sendo um “problema” circunscrito a uma “minoria”, mas buscar alternativas para desfazer este modelo de sociedade, binária e capacitista, onde não cabemos todos.

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