Deixar filhos melhores para o nosso planeta

Brevíssimas notas sobre maternidade e o futuro do planeta, a propósito do lançamento do Azul (o site do PÚBLICO sobre crise climática e sustentabilidade).

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O glaciar Wahlenberg em Svalbard, na Noruega Hannah McKey/Reuters

1. Visitei os fiordes da Noruega há uns 20 anos. Foi o mais perto que estive até hoje daquilo que fantasio ser a natureza intocada: gigantescos blocos brancos com arestas irregulares, uma fita delicada, quase etérea, apartando o céu do azul puríssimo da água. Nenhuma construção, nenhum elemento humano visível a não ser o navio onde seguíamos. Durante a viagem, um responsável local explicava-nos que a crise climática tinha tido um “efeito positivo” no que toca à prospecção de combustíveis fósseis em Svalbard: como a camada de gelo tinha ficado mais fina, já seria possível com a tecnologia da altura perfurar a massa de água congelada e chegar às reservas. Na época, ouvi aquela explicação com alguma estranheza mas sem o desconforto físico que estou a sentir agora mesmo, enquanto escrevo estas palavras. As reacções às ideias dominantes não emergem num vácuo sociopolítico, elas dependem da evolução das narrativas e dos contextos que nos rodeiam. Já pensaram que achávamos normal, quando éramos crianças, não haver nenhum aluno com deficiência na nossa turma?

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1. Visitei os fiordes da Noruega há uns 20 anos. Foi o mais perto que estive até hoje daquilo que fantasio ser a natureza intocada: gigantescos blocos brancos com arestas irregulares, uma fita delicada, quase etérea, apartando o céu do azul puríssimo da água. Nenhuma construção, nenhum elemento humano visível a não ser o navio onde seguíamos. Durante a viagem, um responsável local explicava-nos que a crise climática tinha tido um “efeito positivo” no que toca à prospecção de combustíveis fósseis em Svalbard: como a camada de gelo tinha ficado mais fina, já seria possível com a tecnologia da altura perfurar a massa de água congelada e chegar às reservas. Na época, ouvi aquela explicação com alguma estranheza mas sem o desconforto físico que estou a sentir agora mesmo, enquanto escrevo estas palavras. As reacções às ideias dominantes não emergem num vácuo sociopolítico, elas dependem da evolução das narrativas e dos contextos que nos rodeiam. Já pensaram que achávamos normal, quando éramos crianças, não haver nenhum aluno com deficiência na nossa turma?

2. Quando o meu filho menor ainda era um bebé, tive a oportunidade de entrevistar Christiana Figueres, nas vésperas na Cimeira do Clima de Paris, em 2015. A diplomata costa-riquenha estava então à frente da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) e o tema da conversa seria, obviamente, o tão urgente acordo internacional para que pudéssemos desacelerar a subida da temperatura global. A primeira pergunta foi sobre como Figueres, que tem formação em antropologia, se interessou pela área das políticas públicas associadas ao clima. A resposta gravitava à volta da infância, maternidade e biodiversidade. Os pais de Figueres costumavam levá-la, ainda menina, para ver os girinos dos sapos-dourados na reserva biológica Bosque Nubloso Monteverde, na Costa Rica. Quando Figueres foi mãe, percebeu que a espécie endémica Bufo periglenes já não estava presente naquele ecossistema (mais tarde descobriu-se que a culpa foi dos fungos) e que os seus filhos estariam privados daquela experiência. Recordo-me de ter ficado então sensibilizada com o facto de não sermos capazes de transmitir aos nossos filhos ecossistemas tão ricos como aqueles que recebemos. A ideia não era nova para mim, mas o facto de voltar a ouvi-la num contexto profissional, menos de um ano depois de ser mãe pela segunda vez, conferiu um tom de gravidade à mensagem. Seria de facto um planeta empobrecido aquele que eu deixaria de herança às minhas crianças.

3. Portugal está em situação de seca desde o início de 2022. As imagens que circulam nos meios de comunicação mostram solos ressequidos, barragens esvaziadas. Por ocasião da preparação dos trabalhos para o lançamento do Azul – o novo projecto do PÚBLICO, dedicado inteiramente ao ambiente, à crise climática e à sustentabilidade , falei com vários especialistas sobre a mudança do clima. Confirmei aquilo que já sabia, mas que, sendo reiterado por fontes que consagraram uma carreira ao estudo do tema, adiciona uma nova camada de ansiedade à vida quotidiana: a água que abunda nas nossas casas é um privilégio de curto prazo. Imagino piscinas vazias, com azulejos rachados, lodo seco no fundo. Nessa paisagem imaginária de abandono e desidratação, penso em todas as crianças que, como o meu filho, têm na hidroterapia os momentos mais felizes da semana. Será a natação reservada às elites num futuro próximo?

4. Não escrevo estas notas movida pelo desespero. Vejo o conhecimento e a tecnologia como instrumentos que, se bem usados por líderes e decisores, nos podem conduzir a um futuro habitável, ainda que menos auspicioso do que poderia ter sido. Mas entendo também que temos de diversificar a conversa sobre o planeta, sobretudo no que toca à perspectiva da herança. Este discurso coloca o sistema terrestre como uma propriedade que possuímos, com direito a escritura e tudo o mais, e da qual nos podemos servir e legar à geração seguinte. Não é verdade. Como disse a bióloga Maria Amélia Martins-Loução, somos nós que precisamos do planeta – e não o contrário. E daí que faça mais sentido deixar filhos melhores para o nosso planeta: crianças que foram ensinadas a ver a diminuição do gelo como um horror e não uma oportunidade, a respeitar a fauna e a flora porque a biodiversidade é um bem em si próprio (e não um imóvel que herdamos) e, por fim, a valorizar todos os recursos como privilégios finitos, precários. Quando eu morrer, é essa a “herança” que gostaria de deixar ao planeta.