Os mais idosos não podem fugir da guerra: “Não há para onde ir, apenas Odessa”

O corpo não os deixa partir, ou o dinheiro não chega para a fuga, ou a vida fora da única terra que conhecem não faz sentido. Os habitantes mais velhos do porto no mar Negro sabem o que aí vem. “Vamos embora e depois o que acontece? Morremos de fome ou vivemos à conta de alguém?”

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Oleksandr Zaiarni, de 68 anos, nunca saiu de Odessa. Aqui nasceu, como a mãe e a sua avó Salwan Georges/Washington Post

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Anna Churiliana já não consegue ver, mas as descrições que ouve todas as noites quando liga a televisão no noticiário são horrendas. Junta as mãos e imagina que Kiev e Kharkiv (Carcóvia) ainda são as belas cidades que conheceu. Os olhos enchem-se de água quando imagina como estarão agora, após mais de uma semana de pesados bombardeamentos russos. “As explosões são todas tão horríveis”, diz numa voz trémula. “Eu não posso vê-las, sinto-as em todo o corpo.”

Por toda a Ucrânia, há gente em movimento em busca de segurança fora do país ou em zonas a Ocidente, mais distantes das forças russas. As imagens que se vêem nas estações de comboios mostram sobretudo mulheres e crianças puxando malas e levando os pertences que conseguem carregar. Homens entre os 18 e os 60 anos estão proibidos de sair do país.

E depois há os idosos. Para muitos, sair pode ser desgastante, emocionalmente e fisicamente. Para outros, como Anna Churiliana, que tem 90 anos, é tão impraticável que é impossível. E há ainda os que insistem em permanecer, resistindo teimosamente à retirada, apesar dos apelos dos familiares, por lealdade e amor à sua cidade, o que é especialmente verdade aqui – os habitantes chamam-lhe carinhosamente “Mamã Odessa”, como se ela fosse uma matriarca que os protege.

Anna Churiliana quase não sai do seu apartamento no centro de Odessa há cinco anos. Todos os dias diz em voz alta os pontos de referência à volta do prédio, uma maneira de garantir que o seu mundo não fica confinado apenas àquelas paredes. Pediu à sobrinha, que mora com ela, que pusesse panos nas janelas para se protegerem de explosões – o que torna o seu mundo sombrio ainda mais sombrio.

“Que diferença faz isso para mim?”, diz. “Embora gostasse de sentir a luz do sol.”

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Anna Churilyana, 90 anos, no seu apartmento em Odessa Salwan Georges/Washington Post

Ao contrário de outras grandes cidades ucranianas que estão debaixo de bombardeamentos quase constantes desde que a Rússia lançou o primeiro ataque, a 24 de Fevereiro, os habitantes de Odessa, cidade portuária no mar Negro, tiveram quase duas semanas, caso quisessem partir em segurança para oeste. As fronteiras com a Moldova e a Roménia, menos congestionadas pelo fluxo de refugiados do que a Polónia, também estão próximas.

E se os ucranianos nas cidades ocidentais e centrais do país, como Lviv e Dnipro, estão optimistas quanto à possibilidade de não serem atacados pelas forças russas, em Odessa não têm essa ilusão. Este é um dos maiores portos do mar Negro, estratégico para a Ucrânia e sem dúvida um alvo para a Rússia.

Depois de verem a destruição e o derramamento de sangue em Kharkiv e nos arredores de Kiev, porque não deixar Odessa, trocando-a por terrenos mais seguros, quando é fácil adivinhar o que vai acontecer?

Dois voluntários pararam no apartamento de Churiliana no domingo para entregarem um saco de alimentos não perecíveis – trigo-sarraceno, atum enlatado e outros produtos. Estas são as outras pessoas que, apesar dos riscos, permanecem na Ucrânia: cidadãos comuns que, por todo o país, se mobilizaram para ajudar na guerra e na ajuda humanitária. O número de voluntários para tudo e mais alguma coisa disparou na Ucrânia.

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Maksim Gaida, esquerda, e Eduard Shevchenko conversam com Anna Churilyana, depois de lhe entregarem as compras Salwan Georges/Washington Post

Há duas semanas, a Park Kulturi, de Eduard Shevchenko, era apenas mais um clube recreativo. Agora, com muitos grupos já mobilizados para ajudar soldados e milícias civis, o Park Kulturi concentra os seus esforços num grupo demográfico que Shevchenko considerou estar a ficar esquecido: os reformados e os idosos de Odessa. Na tarde de domingo, Shevchenko e um colega, Maksim Gaida, entregaram alimentos a cinco famílias idosas, incluindo a de Churiliana. Mas, talvez mais importante do que os bens, ofereceram companhia.

“As pessoas querem ajudar de alguma forma, porque ficar em casa sem fazer nada deixa toda a gente louca”, diz Shevchenko. “Podemos fazer uma analogia com a forma como os idosos se sentem: ficam em casa o tempo todo, sentem-se indesejados, porque ninguém lhes liga, e muitas vezes são incapazes de se abastecerem sozinhos.”

Oleksandr Zaiarni, de 68 anos, nunca saiu de Odessa. Aqui nasceu, como a mãe e a sua avó. “Não há para onde ir, apenas Odessa”, diz. “O meu pai morreu na II Guerra Mundial. A minha mulher morreu. Estou sozinho,”

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Oleksandr Zayarny, 68 anos, na sua casa Salwan Georges/Washington Post

O retrato a preto e branco da mulher – que morreu há mais de três décadas, aos 33 anos está pendurado na parede do apartamento que ele mesmo remodelou. Não tiveram filhos, Zaiarni não voltou a casar-se e passou a vida a ajudar outros a consertar as suas casas – este homem de pequena estatura anda com dificuldade, o preço de uma queda grave que deu há alguns anos, quando pintava uma igreja. A guerra é assustadora, diz Zaiarni. [Mas] ainda não chegou a minha vez de morrer. Quero viver pelo menos mais alguns anos.”

Para Evgueni Petrov, de 75 anos, sair de Odessa é uma opção cara. Ainda trabalha, fabricando artigos de couro personalizados no seu sótão – malas, carteiras, estojos para armas. A mulher está no andar de baixo, deitada na cama. Quase não anda e há anos que não sai de casa.

“Vamos embora e depois o que acontece? Morremos de fome ou vivemos à conta de alguém?”, pergunta Petrov. “Aqui ao menos temos essas pessoas que nos ajudam, e isso é o mais importante”, diz sobre os voluntários do Park Kulturi. “É certo que estão todos preocupados connosco, mas a verdade é que fora daqui ninguém precisa de nós.”

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Evgeny Petrov, 75 anos, na sua oficina em casa Salwan Georges/Washington Post

Petrov ouviu a mãe e a avó falarem da II Guerra. Eram histórias sobre bombardeamentos e sirenes de ataques aéreos. Uma parede do prédio onde mora ainda exibe as cicatrizes dessas batalhas e desses bombardeamentos. “Apesar de ter acontecido apenas um ano antes de eu nascer, eram acontecimentos que pareciam muito distantes”, diz. “Agora temos de ver isto com os nossos próprios olhos.”

Embora Churiliana já não possa ver a fotografia do irmão, sabe exactamente onde está pendurada. O irmão usa o uniforme da II Guerra Mundial. Na mesma parede, há outra foto do mesmo irmão, também de farda, mas mais velho. Anna Churiliana nasceu nos Montes Urais russos e mudou-se depois para a Ucrânia com os irmãos. Sobreviveu a todos eles e agora vê o seu país natal, por quem o pai e o irmão combateram, atacar a sua casa. “Só estou à espera que os meus dias acabem”, diz, agora numa voz serena.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post