Pode haver resistência ucraniana à Rússia num cenário de guerra urbana, mas aumentarão as baixas

Há quem diga que a guerra da União Soviética e do Afeganistão pode ser um modelo? Mas isso implicaria contornar todas as regras do direito internacional, no continente europeu e podia arrastar a NATO para o confronto.

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Voluntários das forças de defesa do território recebem armas e munições em Kiev EPA/MIKHAIL PALINCHAK

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O exército ucraniano combate os invasores russos, que avançam cada vez mais sobre as cidades, cercando a capital Kiev, enquanto o Presidente Volodimir Zelensky e os seus ministros apelam à população para que pegue em armas, que lute contra os invasores. Traça-se um cenário de guerra urbana, o que pode prolongar o conflito e torná-lo mais dramático. “Este conflito torna-se mais difícil e potencialmente mais trágico se deixarmos de ter este tipo de operações, como temos vindo a ter até agora, que são bastante cirúrgicas, e entrarmos numa escala mais larga, por exemplo com um mecanismo de guerra urbana”, diz Ana Santos Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova).

O cenário pode tornar-se realidade e têm-se multiplicado nos media norte-americanos análises que imaginam uma resistência armada na Ucrânia, fazendo comparações com o atoleiro em que se transformou o Afeganistão para os soviéticos, na guerra de 1979-1989 — com os resistentes apoiados nos bastidores pelos Estados Unidos. Artigos de opinião como o de Douglas London, um operacional da CIA reformado que fala russo, e que diz ter gerido operações para controlar revoltas, na revista Foreign Affairs.

London imagina que, se a Rússia tentar ocupar a maior parte do território da Ucrânia e tentar instalar um regime fantoche em Kiev, “enfrentará uma revolta longa e sangrenta que poderá espalhar-se para lá de múltiplas fronteiras, chegar talvez até à Bielorrússia”. Ou desestabilizar outros países na órbita da Rússia, como o Cazaquistão, ou a própria Rússia.

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"Tanto a NATO como a União Europeia ou as Nações Unidas estão condicionadas pelo direito internacional em intervir na Ucrânia", diz Ana Santos Pinto DR

Mas, para isto acontecer, seria necessário que Washington se dedicasse ao grande jogo da desestabilização, apoiando de forma encoberta e de várias formas a resistência armada na Ucrânia. Aproveitando tacitamente o facto de a Ucrânia estar rodeada de países da NATO, que teriam simpatia por esta resistência.

Só que isto é transpor o cenário do Afeganistão na década de 1970 para a Europa dos anos 2020, onde a tolerância é menor para golpes abaixo da linha da cintura e as transacções sob a mesa como a aliança feita por Washington com o ditador militar do Paquistão Zia ul-Huq para apoiar os mujahedin afegãos, e com a Arábia Saudita, que ajudou a financiar a revolta contra o regime afegão apoiado por Moscovo, recordada por Bruce Riedel, da Brookings Institution.

“A vulnerabilidade da Ucrânia neste contexto é significativa, pelo seu posicionamento geográfico, pelo diferencial militar [em relação à Rússia], e pelo facto de existir um conjunto de regras internacionais que condicionam o apoio militar externo”, sublinha, por seu lado, Ana Santos Pinto. “Acho que é importante explicar isto, tanto a NATO como a União Europeia ou as Nações Unidas estão condicionadas pelas regras internacionais e pelo direito internacional em intervir na Ucrânia”, frisa.

Há riscos sérios em actuar fora desse quadro. “A última coisa que queremos mesmo que aconteça é um confronto entre a Aliança Atlântica e a Federação Russa. Se fosse tomada uma decisão à revelia das regras internacionais de ter forças da NATO no território ucraniano, isso significaria obrigatoriamente um confronto com a Federação Russa. Isso teria efeitos trágicos não só para a Europa, mas do ponto de vista geral”, sublinha a investigadora.

O Presidente Volodimir Zelensky disse não ver ninguém disposto a vir ajudar os ucranianos a combater os russos. E tem razão. “A Ucrânia está muito só para se defender. E a Federação Russa sabe disso perfeitamente”, diz Ana Santos Pinto.

Isto não quer dizer que a Ucrânia não tenha resistência à invasão russa. “É nesse sentido que o Presidente ucraniano apela a ter recursos humanos, sejam reservistas ou pessoas que estejam disponíveis para combater. Está a prever a possibilidade de uma maior escala do conflito militar. Mas é preciso ter bem presente que essa maior escala significa quase obrigatoriamente um maior número de baixas civis e militares”, sublinha Ana Santos Pinto.

Mas há outras formas de tentar resistir ao avanço da invasão ordenada por Vladimir Putin. “A Ucrânia é a parte mais frágil neste conflito, e não lhe restam muitas outras opções. Mas pode usar e tem usado instrumentos que não são os da guerra convencional: a dimensão ciber, por exemplo, e a dimensão da informação, que é muitíssimo importante nos conflitos”, diz. “Não é só os serviços de informação, mas este fluxo de informação pública. Isto faz parte dos conflitos e pode continuar a existir para a comunidade internacional, para pressionar a via diplomática. Porque esta é a única forma de a Ucrânia sair do conflito, através da via diplomática e não através da via militar”, considera a especialista em segurança internacional.

Mas estará a Rússia preparada para enfrentar um conflito prolongado na Ucrânia, encontrando resistência? Ou esperaria Vladimir Putin uma intervenção rápida? “Aquilo que tem sido o padrão de comportamento na Federação Russa é promover aquilo a que chamamos conflitos congelados. É quando temos uma conflitualidade que acontece, tem picos, depois fica ali latente, não está resolvida, e quem está envolvido, como é o caso da Federação Russa, de uma forma indirecta, não os quer resolver, para poder activar automaticamente quando for do seu interesse. Mas a intervenção que a Federação Russa está a fazer na Ucrânia não é um conflito congelado”, explica Ana Santos Pinto.

Aumentar

Estamos num pico de conflitualidade. Que tem demasiados custos para ser longo. “Sabemos que este tipo de operações militares não se pode prolongar muito no tempo. Porque é muito caro, e porque exige, mesmo em regimes autoritários, como é o caso da Federação Russa, ter uma legitimidade perante a sua população”, salienta a investigadora. O que implica, para Moscovo, “investir numa solução mais robusta, no sentido militar”.

Se houver uma resposta do povo ucraniano, “seja através da resistência cívica, seja através da resistência militar”, sugere Ana Santos Pinto, pode “causar um condicionamento e um obstáculo significativo aquilo que sejam as ambições do regime russo”.