Amnistia acusa farmacêuticas e países ricos de terem contribuído para uma “catástrofe de direitos humanos”

Podiam ter sido “os heróis de 2021”, mas acabaram por virar as costas aos países mais pobres e, por isso, mais necessitados. A procura pelo lucro foi a razão, diz a organização dos direitos humanos.

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Nos países de baixo rendimento, apenas 4% da população tinha a vacinação completa no final do ano passado EPA/MONIRUL ALAM

Num relatório publicado esta segunda-feira, intitulado Money Calls The Shots (em tradução livre, O Dinheiro É Quem Manda), a Amnistia Internacional acusa as farmacêuticas de priorizarem o dinheiro em vez dos direitos humanos e de terem abandonado os países de menor rendimento, já que o número total de vacinas produzidas em 2021 teria sido mais do que suficiente para se atingir a meta de haver 40% da população mundial com a vacinação completa até ao final desse ano.

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Num relatório publicado esta segunda-feira, intitulado Money Calls The Shots (em tradução livre, O Dinheiro É Quem Manda), a Amnistia Internacional acusa as farmacêuticas de priorizarem o dinheiro em vez dos direitos humanos e de terem abandonado os países de menor rendimento, já que o número total de vacinas produzidas em 2021 teria sido mais do que suficiente para se atingir a meta de haver 40% da população mundial com a vacinação completa até ao final desse ano.

“[As farmacêuticas] monopolizaram a tecnologia, bloquearam e pressionaram no sentido de não haver uma partilha da propriedade intelectual, cobraram preços elevados pelas vacinas e priorizaram o fornecimento aos países ricos”, disse a organização em comunicado.

A par das farmacêuticas, o relatório também aponta o dedo aos países ricos, que têm acumulado vacinas e avançado com doses de reforço, ao mesmo tempo que nos países em desenvolvimento apenas 4% da população tinha a vacinação completa no final do ano passado. A Suécia, por exemplo, avançou esta segunda-feira com a possibilidade de administrar uma quarta dose nos maiores de 80 anos.

Segundo dados da investigação, o número de doses de reforço dadas a partir de Julho do ano passado nos países de alto e médio-alto rendimento foi mais elevado do que o número total de inoculações ocorridas em países de baixo rendimento.

“Mais de 1,2 mil milhões de pessoas em países de baixo e médio-baixo rendimento poderiam ter sido vacinadas até ao final de 2021 se os países de alto rendimento e os fabricantes de vacinas tivessem levado a peito as suas obrigações e responsabilidades a nível de direitos humanos”, afirmou Rajat Khosla, director sénior de Investigação, Advocacia e Política da Amnistia.

Fazendo uma comparação entre as farmacêuticas quanto ao número de doses que forneceram aos países mais pobres no ano passado, a Johnson & Johnson e a AstraZeneca foram as que ficaram melhor na fotografia. Se a primeira distribuiu cerca de metade das 300 milhões de doses de vacinas que produziu em 2021 a países de baixo e médio-baixo rendimento, a segunda até forneceu maioritariamente a países de médio-baixo rendimento (70% das suas 2,4 mil milhões de doses) e cerca de 2% aos de baixo rendimento. A AstraZeneca foi a primeira a juntar-se à iniciativa global COVAX, mas admitiu que lucrar com a vacina no futuro é um dos seus principais objectivos, como cita a organização no relatório.

Já os valores da Moderna e a Pfizer-BioNtech, cujo lucro registado em 2021 supera os 54 mil milhões de dólares (cerca de 48 mil milhões de euros), ficaram muito abaixo “do que é necessário para uma distribuição justa das suas vacinas”. Em resposta à organização, a Pfizer defendeu que foram os países mais ricos que reservaram as primeiras doses da marca, enquanto os países de rendimento médio e baixo se viraram para outros fabricantes, “seja devido à incerteza perante a tecnologia ARN mensageiro (ARNm), seja porque estavam à procura de outras opções”, cita a Amnistia.

A Moderna forneceu cerca de 25% das suas 673 milhões de doses aos países de menor rendimento e a Pfizer/BioNTech cerca de 15%, de um total de 2,4 mil milhões de vacinas. Também as companhias farmacêuticas chinesas se ficaram por estes números, sendo que aqui o maior obstáculo a um acesso justo às vacinas prende-se com a “falta de transparência” associada, segundo o relatório.

A recusa de um levantamento das patentes

Paralelamente, a Amnistia Internacional acusa as farmacêuticas de se recusarem a levantar as patentes das vacinas, bem como a transferirem a tecnologia e o conhecimento necessários para uma produção mais ampla de vacinas contra a covid-19.

Para além da iniciativa COVAX, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem vindo a criar diversas outras iniciativas que visam reunir propriedade intelectual, dados e processos de fabrico num só pacote, como a Covid-19 Technology Access Pool. Também promove programas direccionados especificamente para a transferência da tecnologia associada às vacinas de ARNm, que é aplicada no caso das farmacêuticas Moderna e da Pfizer-BioNtech, por ser considerada mais fácil de manusear e que pode, portanto, ser produzida por um número vasto de fabricantes farmacêuticos à volta do mundo.

No entanto, a adesão a estas iniciativas de levantamento das patentes tem sido praticamente nula, defendendo as farmacêuticas que não seria isto que tornaria o acesso às vacinas mais justo.

Para atingir a nova meta proposta pela OMS, de se ter 70% da população mundial completamente vacinada até Julho deste ano, há que mudar o rumo, apela a organização.

“Quantas variantes mais teremos de viver até que os países de alto rendimento e as empresas farmacêuticas se apercebam de que os que vivem em países de baixo rendimento precisam de ter acesso às vacinas — e não apenas os que vivem nos países ricos"?