Lisboa 2022: da gentrificação à geoarbitragem

Em 2018 a palavra gentrificação foi uma das mais pesquisadas no Priberam: a rapidez com que esta palavra se propagou foi proporcional à velocidade das transformações dos centros de Lisboa e Porto. A popularização de conceitos académicos é salutar, mas tem riscos. E neste caso o maior é tornar-se uma catchword para explicar todo o tipo de mudanças urbanas, perdendo de vista a sua complexidade.

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Em 2018 a palavra gentrificação foi uma das mais pesquisadas no Priberam: a rapidez com que esta palavra se propagou foi proporcional à velocidade das transformações dos centros de Lisboa e Porto. A popularização de conceitos académicos é salutar, mas tem riscos. E neste caso o maior é tornar-se uma catchword para explicar todo o tipo de mudanças urbanas, perdendo de vista a sua complexidade.

Para antecipar o crescimento e complexificação das transformações iniciadas na década anterior, vale a pena trazer a público o conceito de geoarbitragem: a optimização das diferenças de custo de vida entre diversas áreas geográficas (continentes, países ou regiões) para benefício pessoal e/ou empresarial, uma prática frequentemente transformada em modus vivendi.

Este conceito teve origem no universo dos empreendedores. Foi divulgado a partir de 2007 com o livro The 4-Hour Workweek, de Timothy Ferriss, um “lifestyle designer” e profeta da maximização da relação custo/benefício para uma vida aprazível. Apesar do carácter pouco recomendável dos seus livros – a avaliar pelos títulos – o conceito foi adoptado na academia por Matthew Hayes. Dando conta das motivações das migrações de estilo de vida, protagonizadas por indivíduos qualificados, cada vez mais relevantes e impactantes nos locais de destino, a geoarbitragem é, analiticamente, muito útil.

A par do turismo, foram estas migrações (e outras estritamente de investimento) que em Lisboa eclodiram no final da última década, tal como analisado por Joaquim Montezuma e Jennifer McGarrigle. Mas a pandemia não interrompeu este processo, pelo contrário: em 2020 o número de residentes estrangeiros em Lisboa era 107.238 (dados SEF), um valor surpreendente face à população residente (545.923, dados provisórios Censo 2021), mais 8.397 relativamente a 2019 e mais do dobro de 2015, 51.690. O top 5 das nacionalidades em 2020 (Brasil, Nepal, China, França e Itália) em relação a 2015 (Brasil, China, Nepal, Cabo Verde, Índia) revela o crescimento desses imigrantes de estilo de vida (sobretudo com a inclusão da Europa) e o reforço da dualização social dos estrangeiros em Lisboa, ilustrativa das atuais desigualdades globais.

Se um passeio por Lisboa em 2021 já permitia intuir outras mudanças, algumas pesquisas exploratórias nas redes sociais e Internet só vêm reforçar, e muito, essa intuição. As palavras-chave mais produtivas são: expats e nomads. No Facebook percebe-se algumas coisas sobre estes expats e nomads que chegam a Lisboa. As suas estadias, ocasionalmente intermitentes, têm durações muito diferenciadas: semanas, meses, um ano ou mais. Porque muitos vêm sozinhos, a procura de quartos é grande, mantendo-se a de apartamentos. A sua diversidade - económica, profissional, familiar ou de nacionalidade - é significativa. Gostam muito de conviver entre eles. Falam bastante de vistos e alguns mostram grande familiaridade com o universo das criptomoedas e dos NFT.

Mas são os sites especializados, como o nomadlist, os mais informativos, confirmando a relevância do factor económico na atração de estrangeiros. Nesse site, os atributos nacionais mais valorizados são os benefícios fiscais para estrangeiros (em especial o residente não habitual - RNH) ou a inexistência de taxas sobre a riqueza, dividendos de origem estrangeira ou sobre os ganhos das criptomoedas. Acresce o baixo custo de vida, designadamente a acessibilidade das rendas, o que não é consensual entre vários membros dos grupos do FB que se mostram surpreendidos com o seu valor elevado. Nas discussões do tema muitos reconhecem que os preços são altos, sobretudo face aos salários locais, mas incomparáveis com muitas cidades europeias. As sugestões de zonas mais acessíveis, fora do centro ou noutros concelhos da área metropolitana, são frequentes.

Claro que a geoarbitragem resulta da articulação entre as vantagens económicas e um estilo de vida garantido por algumas condições: 1. geográficas - clima ameno e soalheiro, proximidade ao mar, relativa centralidade do país no contexto global; 2. logísticas - velocidade da internet, quantidade de espaços de coworking e cafés com wifi, transportes, etc.; 3. sociais e vivenciais - simpatia dos locais, domínio do inglês, sofisticação da “cena urbana”, diurna e noturna, e segurança. Mas aquele site acrescenta mais dois atributos: o fácil acesso a um passaporte da UE, evidenciando o papel de Portugal como porta de entrada para a Europa; e a elevada vacinação que, a par das restrições introduzidas por todos os países, ajuda a explicar a alteração, mais ou menos transitória, das rotas destes migrantes em contexto pandémico - o crescimento da apetência pelo “sul próximo” (uma proximidade geográfica, mas também cultural, social ou institucional, que atenua a incerteza da pandemia), como Lisboa, em detrimento de outras geografias mais distantes, como o Sudeste Asiático.

O reforço da vocação de Lisboa como território de eleição destes migrantes é ainda corroborado por dois indicadores: ambos ilustrativos de um encontro entre essa procura e a oferta, pressionada pela necessidade de escoar os alojamentos locais esvaziados pela pandemia. O crescimento das plataformas de arrendamento de média duração que a prazo poderão competir com as de curta duração, como o Airbnb. E aqui, para além da Uniplaces, destaco: a Flatio que no final de 2020 se juntou à NomadX (baseada em Lisboa) de modo a expandir o negócio em Portugal e que oferece arrendamento ao mês e ao dia; e a holandesa Housing Anywhere. Também os dados do INE apresentados na LXhabidata revelam um crescimento relevante dos contratos de arrendamento em Lisboa no último semestre de 2020 e no primeiro de 2021: esse crescimento não se deve exclusivamente a estes indivíduos, mas parte poder-se-á explicar por aí.

A pandemia terá reforçado o capital competitivo de Lisboa no ranking global da geoarbitragem, engrossando e diversificando os contingentes locais destes expats: reformados, nómadas digitais, profissionais altamente qualificados, investidores, estudantes, etc. Mas o cosmopolitismo, a abertura e o desenvolvimento económico e cultural daí resultantes, não deve impedir a antecipação de soluções mitigadoras dos seus efeitos perversos: e fazê-lo nada tem que ver com xenofobia.

Seria avisado, por exemplo: equacionar seriamente a falta de equidade fiscal de certas situações de exceção, como o RNH; manter e reforçar o esforço de disponibilização de habitação acessível do anterior executivo da CML, articulando-o com um planeamento urbano de zonas hoje totalmente separadas da cidade, como Chelas; assumir que a inacessibilidade habitacional é cada vez menos um problema exclusivo da cidade de Lisboa e cada vez mais uma questão da sua área metropolitana - veja-se o crescimento dos preços das rendas em quase todos os seus concelhos; ou repensar a regulação do alojamento local (e ponderar a sua articulação com o crescente arrendamento de média duração), equacionando que tão ou mais importante do que a concentração territorial é a concentração empresarial.