Um dicionário da infância para nos desarrumar o mundo

O meu mundo já é noutro planeta, mas eu gostava muito que, quando ela aterrasse nele, continuasse a lembrar-se de como era bom ganhar em conjunto com alguém e que continuasse a fazer de um bocadinho bom uma eternidade.

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Adriano Miranda

As frases dela também davam um livro, acho eu. Sou suspeita, porque sou mãe dela e, ainda por cima, tendo a encontrar na infância momentos de inspiração, daqueles em que se vira tudo do avesso, palavras, gramática, ideias feitas. A infância é, para mim, como o título do livro de Manuel António Pina, o país das pessoas de pernas para o ar. Plurais e singulares misturados, consoantes trocadas, uma confusão entre realidade e imaginação, o ontem e o amanhã a fundirem-se num tempo novo.

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As frases dela também davam um livro, acho eu. Sou suspeita, porque sou mãe dela e, ainda por cima, tendo a encontrar na infância momentos de inspiração, daqueles em que se vira tudo do avesso, palavras, gramática, ideias feitas. A infância é, para mim, como o título do livro de Manuel António Pina, o país das pessoas de pernas para o ar. Plurais e singulares misturados, consoantes trocadas, uma confusão entre realidade e imaginação, o ontem e o amanhã a fundirem-se num tempo novo.

No outro dia, ela disse-me: “Mamã, posso ficar um bocadinho contigo para sempre?” E eu respondi que claro que sim, que podia ficar um bocadinho comigo para sempre, sempre que quisesse. Num país como o dela, no tal em que se anda de pernas para o ar, o tempo é outro, mais elástico e moldável, um bocadinho e sempre não se anulam, os contrários realçam-se. Lembro-me de uma frase minha quando era criança, quando ainda vivia nesse sítio do avesso, que mostrava isso mesmo. Escrevi eu, num pequeno livro de papel que fiz depois de ter ido ao circo: “Estava tanta gente no circo que eu não conseguia ver bem as pessoas.”

Mas não é só a gramática, as vogais ou as consoantes, os plurais e os singulares, é também um olhar sobre o mundo e as pessoas que é diferente. Há uns tempos, estava a jogar dominó com ela e ela ganhou. Disse-lhe: “Boa, filha, ganhaste.” Mas nesse dia, como noutros, ela insistiu que queria que ganhássemos juntas. Respondeu-me: “Não, mamã. Vamos ganhar juntas.” E lá tive eu de continuar a jogar até ficar sem nada em mãos. Ela ficou satisfeita, e o engraçado é que não é condescendência em relação à mãe derrotada, ela acha mesmo piada a partilhar a vitória: “Boa, mamã, ganhámos juntas!” Não acontece sempre, às vezes apetece-lhe ganhar sozinha, mas ela baralha o conceito e baralha-nos a nós com isso.

Não se pode fazer generalizações, haverá adultos a viver de pernas para o ar, e ainda bem. Mas arriscaria dizer que, pelo menos no meu caso, fui perdendo algumas capacidades, como a de olhar para o tempo daquela forma elástica, já não consigo aproveitar tão facilmente um bocadinho bom como se fosse para sempre, a noção que me acompanha é a de que tudo passa demasiado depressa e não há tempo para nada. O meu mundo já é noutro planeta, mas eu gostava muito que, quando ela aterrasse nele, continuasse a lembrar-se de como era bom ganhar em conjunto com alguém e que continuasse a fazer de um bocadinho bom uma eternidade. É uma questão de perspectiva.

No livro O Dicionário do Menino Andersen (com texto de Gonçalo M. Tavares, ilustrações de Madalena Matoso e editado pelo Planeta Tangerina), lê-se sobre a tartaruga: “É um animal que está sempre em último lugar. Portanto, se de repente se virar para o outro lado, fica logo em primeiro lugar. Ou seja: a tartaruga é um animal que só não está à frente de todos porque ainda não se virou para o outro lado.”

Com sorte, digo eu, se a lebre se virar ao mesmo tempo, ainda ganham juntas.