Grada Kilomba: “Portugal tem um desfasamento no discurso sobre outros corpos”

Ciclo de conferências trouxe também Dulce Maria Cardoso, que defendeu a criação de “um rendimento básico incondicional para os artistas”.

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Numa conferência que acabou por tomar o formato de uma conversa ao final da tarde, a artista e académica Grada Kilomba, que tem uma obra multidisciplinar centrada na descolonização do conhecimento, afirmou que o seu processo de criação começa pela escrita. Autora do livro Memórias da Plantação: Episódios do Racismo Quotidiano (Orfeu Negro, 2019), Grada Kilomba, que vive há anos em Berlim, foi neste sábado uma das participantes no ciclo de conferências O Mundo de Amanhã, inserida no 31.º aniversário do PÚBLICO, numa sessão conduzida pelo jornalista Vítor Belanciano.

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Numa conferência que acabou por tomar o formato de uma conversa ao final da tarde, a artista e académica Grada Kilomba, que tem uma obra multidisciplinar centrada na descolonização do conhecimento, afirmou que o seu processo de criação começa pela escrita. Autora do livro Memórias da Plantação: Episódios do Racismo Quotidiano (Orfeu Negro, 2019), Grada Kilomba, que vive há anos em Berlim, foi neste sábado uma das participantes no ciclo de conferências O Mundo de Amanhã, inserida no 31.º aniversário do PÚBLICO, numa sessão conduzida pelo jornalista Vítor Belanciano.

Ela, que também é professora universitária, com uma obra que oscila entre as artes visuais e a escrita, entre o ficcional e o documental, contou que tenta perceber a forma, o suporte, com que cada obra quer surgir no mundo. “Cada obra quase que sussurra em que formato quer aparecer. É uma performance da escrita”, disse a artista, acrescentando que essa transformação pode tomar a forma de um vídeo, de uma instalação ou de um livro.

A artista explicou que trabalha, sobretudo, para entender qual é a sua história. Com uma história familiar que passa por Portugal e São Tomé, mas também por Angola, Grada Kilomba lembrou que muitas partes dessa história não foram documentadas ou arquivadas, não fazem parte dos currículos nacionais. “Essa pesquisa não pára. Às vezes torna-se um trabalho muito complexo, uma obra que pode ser colocada em muitos lugares mas não tem lugar em espaço nenhum.” Os seus livros pertencem à psicanálise? São líricos? — perguntou. “Esse problema de não saber onde os colocar faz parte do processo de descolonização. Para entender quem eu sou não posso usar linguagens que me excluem.” Ou como disse mais à frente, na resposta à pergunta de um leitor: “Eu tenho que saber como posso entrar como personagem na minha história.”

Interrogada sobre uma petição que, recentemente, pediu a deportação de Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo (depois das declarações do activista sobre Marcelino da Mata, em que chamou ao polémico militar “torcionário do regime colonial”), a artista e académica lembrou que tornou pública a sua posição através de um vídeo: “O que está a acontecer com Mamadou Ba já aconteceu com outras figuras que têm uma voz. Como é que vozes e corpos que são importantes se tornam inexistentes numa nação? Não é por acaso que se tenha tentado a ausência do corpo de Mamadou Ba. Nós temos essa tradição nacional de criar estes corpos ausentes. Portugal tem um desfasamento no discurso sobre outros corpos. É importante transformar as narrativas e fazer o que quer uma nova geração.”

Grada Kilomba defendeu que é importante descodificar o mito de que o combate anti-racista traz fracturas sociais: “A história colonial está presente há 500 anos na nossa biografia, se não se faz um trabalho de descolonização — o racismo esteve no centro das políticas europeias como lei e agora [continua] como uma ideologia –, a violência não é interrompida. Ela só será interrompida se várias vozes e corpos contarem a sua história.”

Rendimento mensal fixo

Duas horas depois, no mesmo ciclo de conferências, a escritora Dulce Maria Cardoso, autora de obras como O Retorno ou Eliete, fez um apelo para que seja criado “um rendimento básico incondicional para os artistas”, numa conversa com os leitores conduzida pela jornalista Isabel Coutinho. “Que quem se dedique a tempo inteiro à criação artística tenha direito a um rendimento mensal fixo, independente daquilo que crie, um rendimento que lhe permita viver com dignidade e criar de forma livre. Que os apoios afectos à cultura sejam repensados de modo a viabilizar a existência de um tal rendimento.” Para a maioria dos artistas, lembrou, o mercado não funciona. “Os subsídios, como estão concebidos, também não funcionam. Temos que provar que temos uma estrutura, cada vez com mais condicionantes, para o Ministério da Cultura dar os apoios”. Num momento em que a ministra da Cultura discute com o sector da Cultura a criação de um Estatuto do Artista, a escritora esclareceu que nunca conversou com Graça Fonseca sobre a ideia de criar esse rendimento: “Sempre estive afastada das esferas mais próximas do poder.” Uma leitora agradeceu a Dulce Maria Cardoso por colocar “a fasquia mínima da dignidade na utopia”.