Covid-19 e obesidade, uma equação de alto risco

Sofrer de obesidade faz com que se corram riscos acrescidos se tiver covid-19: há mais probabilidades de se ser internado, e até de ir parar aos cuidados intensivos. Depois da idade avançada, é o factor de maior risco.

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Nos cuidados intensivos do Centro Hospitalar Tondela-Viseu: pessoas com obesidade têm 1,6 vezes mais probabilidades de serem internadas com covid-19 Paulo Pimenta

Ter peso a mais, ter obesidade, é um risco acrescido se se tiver covid-19? Relatos de camas de hospitais cheias de pessoas com excesso de peso sucederam-se em vários países, e vários estudos confirmam-no: a obesidade aumenta o risco para os doentes de covid-19 de terem de ser internados, e mesmo de terem de entrar nos cuidados intensivos. Mas a ciência é menos conclusiva quanto ao risco agravado de morte. Pelo menos em Portugal, as pessoas obesas não parecem ter um maior risco de morte por terem covid-19.

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Ter peso a mais, ter obesidade, é um risco acrescido se se tiver covid-19? Relatos de camas de hospitais cheias de pessoas com excesso de peso sucederam-se em vários países, e vários estudos confirmam-no: a obesidade aumenta o risco para os doentes de covid-19 de terem de ser internados, e mesmo de terem de entrar nos cuidados intensivos. Mas a ciência é menos conclusiva quanto ao risco agravado de morte. Pelo menos em Portugal, as pessoas obesas não parecem ter um maior risco de morte por terem covid-19.

A obesidade torna mais grave a covid-19?

Há muitos estudos que relacionam a obesidade com casos mais graves de covid-19, os que precisam de internamento hospitalar e tratamento mais agressivo. Em Agosto, uma meta-análise de 75 estudos em inglês e chinês, que abrangeu uma base de dados de 399 mil pacientes, e publicada na revista Obesity Reviews, concluiu que pessoas com problemas de obesidade têm um risco 46% maior se contraírem o vírus SARS-CoV-2.

E o risco de pessoas com um índice de massa corporal (IMC) superior a 30 — a relação entre a altura e o peso de um indivíduo —, classificadas como obesas, virem a necessitar de tratamento hospitalar é de 113%, concluiu o estudo, que tem como principal autor Barry Popkin, da Universidade da Carolina do Norte (EUA) e do Banco Mundial. É ainda 74% mais provável que estas pessoas vão parar aos cuidados intensivos – e têm 48% mais probabilidades de morrer.

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Doente nos cuidados intensivos no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures Miguel Manso/PÚBLICO

Vasco Ricoca Peixoto, do Centro de Investigação Integrada em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, sublinha que prefere não falar de percentagens, mas de “riscos ajustados”, para levar em conta as variáveis que podem confundir uma análise. Mas corrobora, usando dados portugueses, que a obesidade é o factor de risco mais importante para agravar a infecção pelo SARS-CoV-2. “Só é ultrapassada pelas idades a partir dos 60 anos. Ou seja, a obesidade aumenta 1,6 vezes o risco de ser internado e a idade entre 60 e 69 anos aumenta duas vezes esse risco”, disse ao PÚBLICO.

“As pessoas com obesidade têm uma probabilidade maior de ter doença mais grave, eventualmente com maior dificuldade respiratória. É um dos factores mais importantes para o internamento em cuidados intensivos, explica o investigador português.

Quando o IMC ultrapassa os 25, a Organização Mundial de Saúde considera que a pessoa tem excesso de peso, e é considerada obesa quando vai além dos 30. Se o IMC for igual ou acima de 40, considera-se que é obesidade grave. E durante este ano de pandemia, hospitais em todo o mundo encheram-se de pacientes com problemas de obesidade que estavam seriamente afectados pela covid-19.

Na primeira vaga de infecções no Reino Unido, no início do ano passado, 70% dos doentes que estiveram nos cuidados intensivos eram obesos ou tinham excesso de peso. O efeito fazia-se sentir sobretudo nas pessoas com idades entre os 55 e os 74 anos, que viviam em áreas pobres, e em alguns grupos (negros, asiáticos e minorias étnicas), atestando a dimensão social da obesidade enquanto doença, frequentemente associada a populações desfavorecidas, diz um estudo da Public Health England (equivalente à Direcção Geral da Saúde).

A obesidade aumenta o risco de morrer com covid-19?

Estudos internacionais apontaram um aumento do risco de morte por covid-19 nas pessoas obesas. O da equipa de Barry Popkin identificou um risco acrescido de 48%. Mas os estudos de Vasco Ricoca Peixoto, com doentes tratados nos hospitais portugueses, não confirmam esse aumento. “Entre os doentes de covid-19 que precisam de hospitalização, os obesos têm mais probabilidades de serem internados nos cuidados intensivos. Mas as pessoas que são hospitalizadas não têm mais risco de morte”, assegura.

Vasco Ricoca Peixoto fez uma análise em real time, a pedido do PÚBLICO, para verificar se na base de dados de 16 mil doentes que precisaram de ser internados, com que está a trabalhar, haveria um maior risco de morte dos doentes obesos, entre os 1800 que precisaram de ser internados nos cuidados intensivos. Isso não se verificou.

“Entre os internados em cuidados intensivos, os maiores factores de risco para a mortalidade são a idade (três vezes mais dos 60 aos 69 anos, cinco vezes mais dos 70 aos 79, sete vezes mais dos 80-89 anos, sete vezes mais nos que têm mais de 90 anos)”, disse Vasco Ricoca Peixoto. “As pessoas com obesidade têm mais probabilidade de passar por situações graves em que precisam de apoio, mas a obesidade só por si não aumenta o risco de morte.”

“As co-morbilidades que fazem aumentar mais a probabilidade de morte são ter uma neoplasia maligna, doença cardíaca, doença renal, doença respiratória, doença hepática e doença neurológica”, conclui o investigador. “Só por si, ter hipertensão ou diabetes não é factor de risco.”

Quais os factores de risco para o internamento com covid-19? 

Ter uma idade mais avançada e ser do sexo masculino são factores de risco genéricos para a covid-19. A idade média de pacientes hospitalizados em vários países varia entre 47 e 73 anos, e 60% são homens, nota um artigo publicado em Janeiro na revista científica Nature Reviews, que teve como principal autor Norbert Stefan, do Instituto de Investigação sobre a Diabetes e Doenças Metabólicas no Centro Helmholtz, em Munique, na Alemanha.

A obesidade é um factor de risco importante, confirmado por vários estudos, notam estes autores, apesar de não ter sido reconhecida logo no início. Só a partir de Abril de 2020 foi detectada a sua importância, escreve a equipa. “Os primeiros estudos que relataram as características dos pacientes hospitalizados com covid-19 mostraram que as co-morbilidades mais importantes eram a hipertensão, a diabetes, doenças cardiovasculares, doença pulmonar obstrutiva crónica, doenças crónicas renais, cancro e doenças crónicas do fígado”, explicam os cientistas.

Mas ter uma doença preexistente pode ser, por si, um factor de risco. Embora apenas 25% dos pacientes infectados com o vírus SARS-CoV-2 tenham comorbilidades, 60% a 90% das pessoas que necessitam de internamento têm doenças preexistentes, nota a equipa de Norbert Stefan.

Entre todas as doenças consideradas como factores de risco para a covid-19, a obesidade é a mais comum: quase todos os países hoje em dia têm uma prevalência acima de 20% de indivíduos com excesso de peso ou obesidade. Os últimos dados disponíveis em Portugal, de 2014, registavam 3,5 milhões de pessoas com excesso de peso, e um milhão de obesos.

Como é que as pessoas obesas se tornam mais susceptíveis à covid-19?

Não há ainda uma explicação clara causa-efeito, mas várias contribuições para o explicar. A biologia da obesidade tem vários factores que parecem feitos à medida da doença causada pelo novo coronavírus para gerar o caos no organismo, como o enfraquecimento do sistema imunitário e uma inflamação crónica. Além, disso, o sangue das pessoas obesas tende a coagular-se com demasiada facilidade, o que é mau, dado que a covid-19 causa vários sintomas cardiovasculares, explica um artigo noticioso na revista Science

Por um lado, as células gordas infiltram-se nos órgãos que produzem as células do sistema imunitário, e estas tornam-se menos eficazes a destruir as células que o coronavírus infecta e transforma em fábricas para produzir cópias de si próprio, explicou à Science Melinda Beck, uma das autoras do estudo na Obesity Reviews. E por outro, o tecido adiposo produz mensagens químicas, denominadas citoquinas, que enviam uma resposta inflamatória – num processo que, nos doentes de covid-19, se pode transformar numa tempestade mortal, em que o organismo é destruído pelo sistema imunitário, em vez de ser protegido da infecção.

Se se formarem coágulos nos pulmões dos doentes de covid-19, a situação pode agravar-se. “Numa pessoa saudável, as células endoteliais dos vasos sanguíneos estão normalmente a dizer ao sangue em circulação: ‘Não coagules’. Mas essa mensagem parece ser modificada pela covid-19”, disse à Science Beverley Hunt, investigadora do Hospital  Guy’s and St. Thomas’ em Londres. “E o sangue de pacientes de covid-19 obesos é o mais viscoso que já vi.”

Todos temos à superfície de vários órgãos receptores ACE2 – enzima conversora da angiotensina –, que funciona como a fechadura na qual encaixa a proteína de espícula (spike) do coronavírus, a chave que usa para penetrar nas nossas células e as transformar em fábricas que produzem cópias dele próprio, para espalhar a infecção. Mas a quantidade de receptores ACE2 varia de pessoa para pessoa, e varia também de tecido para tecido. Encontra-se nos pulmões, no nariz, na boca, mas também nos vasos sanguíneos, os rins, no fígado e no sistema gastrointestinal, no coração. Pessoas obesas e com outras co-morbilidades, como hipertensão, diabetes e doenças coronárias, podem ter maiores quantidades do receptor ACE2, o que poderia explicar a sua susceptibilidade acrescida.

Mas as pessoas obesas são mais facilmente infectadas?

Não, responde Daniel Drucker, do Instituto de Investigação Lunenfeld-Tanenbaum da Universidade de Toronto (Canadá), autor de uma outra revisão de estudos, desta vez publicada na revista Cell Metabolism. Por exemplo, um estudo feito em Nova Iorque com 5700 pacientes hospitalizados concluiu que 41,7% eram obesos – quando a média de indivíduos obesos em Nova Iorque é de 22%, diz a equipa de Barry Popkin.

Mas é uma análise plena de variáveis, e para ser útil é preciso fazer muitos ajustamentos, sublinha Vasco Ricoca Peixoto. “Por exemplo, será que as pessoas obesas se protegem mais? Será que por algum motivo socializam mais? É difícil pesar a exposição ao vírus e o contexto, para podermos dizer se os obesos têm mais probabilidades de serem infectados. E se conseguirmos ajustar para isto tudo, que é muito difícil, poderei dizer se obesos com a mesma exposição ao vírus têm mais infecção sintomática – porque a assintomática continua a não ser testada, na maior parte das vezes”, conclui.

As pessoas com obesidade deviam ter sido colocadas mais à frente nas prioridades do programa de vacinação português contra a covid-19? Estão na segunda fase, a partir de Abril.

“Em termos logísticos, a obesidade teria sido muito difícil de enquadrar na primeira fase”, diz Vasco Ricoca Peixoto. “A idade continua a ser o factor de risco mais importante para a hospitalização e morte”, sublinha.

E depois a obesidade é demasiado comum. “Tenho a ideia que 10% a 20% da população portuguesa será obesa, ou seja, será uma co-morbilidade muitíssimo prevalecente. Não seria expectável que na primeira fase tivéssemos capacidade de vacinar este grupo de uma forma mais ou menos homogénea”, responde. “Porque repare, se ponho na primeira fase um grupo que é 20% da população, é um bocadinho falso, porque alguns só serão vacinados... Sei lá quando”, comenta.

No núcleo dos mais prioritários a vacinar não podem estar grandes grupos populacionais. “E, por outro lado, a obesidade não tem um risco de morte assim tão aumentado, tem sobretudo riscos de hospitalização, e sobrecarga dos serviços de saúde”, justificou.