Comissária da Saúde diz que AstraZeneca tem “responsabilidade moral e contratual” de entregar vacinas previstas

O braço-de-ferro entre a empresa farmacêutica e a Comissão Europeia dura há vários dias. CEO da farmacêutica garante que o contrato não obriga a cumprir as encomendas, só a fazer “os melhores esforços” para entregar as doses pedidas.

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REUTERS/Dado Ruvic/Illustration

A comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, rejeitou nesta quarta-feira as explicações avançadas pelo CEO da AstraZeneca para justificar um atraso no fornecimento de vacinas contra o coronavírus à União Europeia, e insistiu que a empresa farmacêutica tem “obrigações morais, sociais e contratuais” que não pode deixar de respeitar. “Estamos numa pandemia e há pessoas a morrer todos os dias”, lembrou.

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A comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, rejeitou nesta quarta-feira as explicações avançadas pelo CEO da AstraZeneca para justificar um atraso no fornecimento de vacinas contra o coronavírus à União Europeia, e insistiu que a empresa farmacêutica tem “obrigações morais, sociais e contratuais” que não pode deixar de respeitar. “Estamos numa pandemia e há pessoas a morrer todos os dias”, lembrou.

A comissária referia-se às declarações do responsável máximo da farmacêutica britânica e sueca, Pascal Soriot, que numa entrevista ao diário italiano La Reppublica​ veio publicamente esclarecer que o contrato feito com a União Europeia (UE) não refere nenhuma obrigação do número específico de doses a entregar nos prazos estabelecidos. O que está lá escrito é que a empresa se compromete a fazer os “melhores esforços” para cumprir a encomenda das vacinas, afirmou o CEO da AstraZeneca.

Essa não é a interpretação da Comissão Europeia, que foi quem assinou os seis contratos para a aquisição conjunta de vacinas pelos 27 Estados-membros da UE. “A leitura que a empresa não está obrigada a cumprir porque assinámos um acordo para fazer ‘os melhores esforços’ não é correcta nem aceitável”, afirmou Stella Kyriakides.

“Nós assinámos um contrato para a compra antecipada de um produto que, à época, ainda não existia e que, até agora, não foi autorizado. E assinámos esse contrato precisamente para assegurar que a empresa desenvolvia a capacidade de produção para poder entregar um certo volume de doses no dia em que a vacina fosse autorizada”, referiu.

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Pascal Soriot, o CEo da AstraZeneca REUTERS/Brenda Goh

O acordo entre a Comissão e a AstraZeneca, no valor de 336 milhões de euros, prevê o fabrico e distribuição de 400 milhões de doses de vacinas contra o coronavírus. Uma vez que o contrato é confidencial, a comissária não pôde divulgar o número de doses previstas para entrega em cada um dos trimestres do ano, depois de a vacina receber a autorização de mercado da Agência Europeia de Medicamentos.

Mas segundo várias fontes com conhecimento do processo, a expectativa de Bruxelas era que a AstraZeneca entregasse pelo menos cem milhões de doses até ao fim de Março. Na semana passada, a empresa informou a Comissão da existência de constrangimentos na produção de vacinas numa das suas unidades europeias, pelo que só estaria em condições de fornecer cerca de 31 milhões das doses contratadas pela UE.

Na terça-feira, o administrador da empresa, Pascal Soriot, garantia que essa redução significativa no abastecimento de vacinas não representava uma quebra do contrato celebrado com a UE, uma vez que neste não existia uma obrigação de entregar um determinado número de doses num determinado prazo. “O contrato é muito claro: o nosso compromisso é, e cito, fazer ‘o nosso melhor esforço’”, esclareceu.

A comissária da Saúde sublinhou que o contrato assinado com a AstraZeneca em Agosto foi “um investimento de risco, para obter um compromisso vinculativo da empresa de que iria pré-produzir estas doses”. Kyriakides não tem a menor dúvida de que “não assegurar a capacidade de produção vai contra a letra e o espírito do acordo”. A Comissão “está a fazer todos os esforços para resolver a situação”, garantiu. E, ao mesmo tempo, está a tratar de “defender a integridade do nosso investimento e o dinheiro dos contribuintes”, avisou.

Para que todas as dúvidas possam dissipar-se, a Comissão Europeia está a pressionar a AstraZeneca a autorizar a publicação do contrato, que está abrangido por um acordo de confidencialidade. O argumento de Bruxelas é que foi a empresa, pela voz dos seus principais dirigentes, que procedeu à revelação de certas cláusulas, sobre as quais a interpretação dos juristas da Comissão é diferente. Porém, a AstraZeneca não manifestou, para já, intenção de facilitar o escrutínio público do contrato.

Ao final do dia, a comissária da Saúde vai voltar a reunir-se com responsáveis da empresa para tentar encontrar uma solução para o problema. O ambiente entre as partes não é o mais caloroso: depois de dois encontros em que as respostas da AstraZeneca às dúvidas do executivo comunitário foram consideradas “insatisfatórias”, a empresa começou por informar que não tencionava participar na reunião, acabando por rever a sua posição e aceitar enviar um representante ao encontro do grupo de acompanhamento que reúne membros da Comissão e dos Estados-membros.

“Apelo à AstraZeneca que corresponda aos nossos esforços, e forneça toda a informação necessária para que se possa reconstruir a confiança”, declarou Kyriakides. Mas o braço-de-ferro continua.

Segundo uma fonte do executivo, a empresa forneceu uma explicação “muito inconsistente” para os problemas que afectam a sua unidade da Bélgica, uma das quatro fábricas que figuram no contrato como locais para a produção da vacina —​ há outras duas no Reino Unido e ainda uma outra na Alemanha. “A realidade é que continuamos sem saber qual é o problema que impede a produção na fábrica belga, já ouvimos várias versões diferentes”, disse.

Na sua entrevista ao La Repubblica, Pascal Soriot defende-se da acusação de que a AstraZeneca estaria a “desviar” a sua produção da União Europeia para outros mercados, que até agora não sinalizaram problemas de abastecimento. Segundo explicou, os prazos de entrega de vacinas ao Reino Unido serão cumpridos apenas porque a encomenda daquele país foi feita cerca de dois meses antes do contrato com a UE.

O contrato de aquisição conjunta da UE com a AstraZeneca foi fechado em Agosto e as encomendas dos Estados-membros foram colocadas em Outubro. A AstraZeneca e a sua parceira da Universidade de Oxford terão assinado um acordo com o Governo do Reino Unido para cem milhões de doses e, apontou Pascal Soriot, o acordo da UE para 400 milhões de doses foi assinado três meses depois.

A comissária europeia da Saúde não quis comentar as declarações do CEO da AstraZeneca, mas fez questão de dizer que a UE não segue “a lógica de first come, first serve” (o primeiro a chegar é o primeiro a ser servido) nas suas negociações. “Isso pode funcionar no talho do bairro, mas não se aplica nos nossos contratos”, observou. 

Stella Kyriakides precisou ainda que no contrato assinado com a AstraZeneca “não há nenhuma cláusula de prioridade, nem nenhuma hierarquia das quatro fábricas identificadas, duas das quais estão localizadas na União Europeia, e outras duas no Reino Unido”. Isto para contrariar a interpretação, avançada pela farmacêutica, de que o abastecimento do mercado europeu seria garantido pelas unidades na Bélgica e na Alemanha, uma vez que as fábricas britânicas estavam exclusivamente dedicadas ao fornecimento do Reino Unido.

Nas declarações aos media, Pascal Soriot refere ainda que a empresa está a trabalhar para resolver os problemas e para optimizar a produção o mais depressa possível de forma a garantir que a vacina seja produzida na escala e ritmo exigidos. De resto, a AstraZeneca afirma ainda que compreende e partilha “a frustração” com o facto de os volumes iniciais de fornecimento da vacina à UE serem, afinal, “menores do que o previsto”. “Há muitas emoções sobre as vacinas na Europa. É complicado”, refere o CEO ao diário italiano.

“emoção” é fácil de entender. Quando os Estados membros começaram a fazer as suas encomendas de vacinas, tiveram em consideração aspectos como a tecnologia utilizada, o preço por dose, o método de transporte e armazenamento e a facilidade de administração. Em quase todos estes quesitos, a AstraZeneca distinguia-se das suas concorrentes imediatas, pois além de ter um preço mais barato, a sua vacina não é tão exigente em termos de conservação no frio ou extracção de doses a partir de cada ampola. Por isso, vários países reduziram as suas encomendas à Pfizer ou à Moderna, e privilegiaram a AstraZeneca, com a expectativa de conseguir, rapidamente, alargar as suas campanhas de vacinação.

A confirmarem-se os atrasos no fornecimento, a meta fixada pela Comissão de ter pelo menos 70% da população adulta vacinada no final do Verão ficará seriamente comprometida.

Os representantes do comité de acompanhamento da União Europeia reuniram-se duas vezes na segunda-feira com a empresa farmacêutica. No final, a comissária da Saúde, Stella Kyriakides, referia na sua conta oficial do Twitter que as discussões com a empresa resultaram em “insatisfação com a falta de clareza e explicações insuficientes”. “Os Estados-membros da UE estão unidos: os fabricantes de vacinas têm responsabilidades sociais e contratuais que precisam de manter. Com os nossos Estados-membros, solicitámos à AstraZeneca um planeamento detalhado das entregas de vacinas e quando é que a distribuição terá lugar nos Estados-membros”, escreveu.

Este conflito começou já na sexta-feira, quando a AstraZeneca, que desenvolveu a sua vacina com a Universidade de Oxford, avisou a UE de que não poderia cumprir os objectivos de fornecimento acordados até ao final do primeiro trimestre deste ano. A empresa justificou o atraso com problemas na produção, mas a justificação da empresa não convenceu a Comissão Europeia nem os Estados-membros e levantou a suspeita de que a AstraZeneca poderia estar a “desviar” a sua produção para outros mercados, como Estados Unidos da América, Reino Unido e Israel.

Neste momento, só duas das oito vacinas compradas pela União Europeia foram autorizadas pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês), a da Pfizer e a da Moderna. A par da pressão dirigida às farmacêuticas, os chefes de Estado e Governo têm também exigido mais celeridade no processo de licenciamento. A vacina da AstraZeneca ainda espera a aprovação da EMA, que pode surgir nesta sexta-feira na reunião que já está agendada.

Com Andrea Cunha Freitas

(Notícia actualizada às 15h30 com as declarações da comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides)