Biden toma hoje posse num cenário de guerra, em busca de uma paz incerta

As ruas da capital dos EUA vão ser patrulhadas por 25.000 soldados da Guarda Nacional, cinco vezes mais do que o total de militares norte-americanos no Afeganistão e no Iraque. Mas há sinais encorajadores para o novo Presidente dos EUA, que vai ter ao seu lado os líderes do Partido Republicano no Congresso.

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Aos 78 anos, Joe Biden toma posse como o 46.º Presidente dos EUA Reuters/TOM BRENNER

É numa cerimónia intitulada “América Unida” que Joseph Robinette Biden Jr., de 78 anos, assume na quarta-feira as rédeas da Casa Branca, num país profundamente dividido e numa cidade patrulhada por cinco vez mais soldados norte-americanos do que o Afeganistão e o Iraque juntos.

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É numa cerimónia intitulada “América Unida” que Joseph Robinette Biden Jr., de 78 anos, assume na quarta-feira as rédeas da Casa Branca, num país profundamente dividido e numa cidade patrulhada por cinco vez mais soldados norte-americanos do que o Afeganistão e o Iraque juntos.

Nos últimos dias, o centro de Washington D.C. tem sido comparado à famosa Zona Verde de Bagdad, a fortaleza de onde os EUA governaram o Iraque no ano que se seguiu à invasão do país, entre 2003 e 2004. 

Na quarta-feira, 25.000 soldados da Guarda Nacional norte-americana – uma força reservista e ao serviço de cada estado, em tempos de paz – vão patrulhar a capital dos EUA, numa resposta musculada à invasão do Capitólio, no dia 6 de Janeiro, por uma multidão de apoiantes de Donald Trump. 

De acordo com um comunicado do Departamento de Defesa dos EUA, publicado na última sexta-feira, estão agora no Iraque e no Afeganistão um total de 5000 soldados norte-americanos – o número mais baixo desde a invasão do Afeganistão, em 2001.

E, há quatro anos, quando Donald John Trump assumiu a Presidência dos EUA após o período eleitoral mais conturbado da História moderna até àquela data, apenas 8000 soldados da Guarda Nacional estiveram nas ruas de Washington a reforçar os contingentes dos serviços secretos e da polícia.

“Esta tomada de posse marca um novo capítulo para o povo americano – um capítulo para sarar feridas e para uma América unida”, disse o reitor da Universidade do Estado do Delaware, Tony Allen, que é o principal responsável pela cerimónia de quarta-feira. “Chegou a altura de virarmos a página nesta era de divisão”, lê-se no comunicado que dá conta das actividades.

Elementos extremistas

Mas nem o mais optimista dos optimistas seria capaz de concordar com as palavras de Tony Allen, numa conversa franca e reservada. Na tarde desta terça-feira, a poucas horas do início da cerimónia de tomada de posse, dois dos soldados da Guarda Nacional que iam garantir a segurança de Joe Biden e da vice-presidente, Kamala Harris, foram afastados por terem sido descobertas as suas ligações a milícias da extrema-direita, segundo a agência Associated Press.

Os 25.000 soldados da Guarda Nacional tiveram de passar por uma nova triagem, conduzida pelo Exército e pelo FBI, por causa dos receios de infiltração de elementos radicais ligados a milícias armadas e aos grupos que participaram na invasão do Capitólio

“O que acontece é que há uma triagem antes de eles saírem dos seus respectivos estados, e depois há novas triagens até que são postos efectivamente a patrulhar as ruas”, explicou o major-general William Walker numa entrevista ao canal ABC.

Mas o Exército já disse que não sabe ainda qual é “a dimensão do problema”, e que está a “levar muito a sério as ameaças extremistas”.

“Vamos continuar a procurar no Exército, como um todo, para garantirmos que não temos estas ameaças entre as nossas formações. E, se tivermos, vamos encontrá-las e expulsá-las”, disse o secretário do Exército dos EUA, Ryan McCarthy, à CNN.

Despedida de Trump

Para além da segurança mais apertada do que o normal numa cerimónia de tomada de posse, e do vazio de gente em frente ao Capitólio por causa da pandemia de covid-19, Joe Biden vai ter outra imagem a lutar contra o seu momento de glória numa carreira política que já leva cinco décadas.

Horas antes de Biden assumir o seu compromisso com a Constituição dos EUA, às 12h em ponto (17h em Portugal continental), o seu antecessor vai sair da Casa Branca em grande estilo, com guarda militar, passadeira vermelha e, se o seu desejo for satisfeito, com um sobrevoo de caças a rasgar os céus de Washington.

Mas a última viagem de Trump como Presidente dos EUA é também a confirmação de que a fase final do seu único mandato vai ser recordada como um dos maiores desastres da História dos presidentes norte-americanos. Em menos de duas semanas, o Presidente que iria pairar como uma sombra ameaçadora sobre o Partido Republicano nos próximos anos, impedindo qualquer aventura em 2024 que não fosse protagonizada por si ou por si abençoada, transformou-se num corpo estranho e em rápido processo de extracção.

A poucos dias de começar a ser julgado no Senado, no seu segundo processo de destituição nos últimos 13 meses, Trump soube, esta terça-feira, que não vai ter algumas das principais figuras do Partido Republicano a dizerem-lhe adeus.

Segundo o Washington Post, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, optou por estar presente apenas na tomada de posse de Joe Biden. Os seus conselheiros disseram que estar nos dois acontecimentos – separados por 20 quilómetros, e com horas de intervalo – seria “um desafio logístico”. 

E tanto o líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, como o líder da minoria republicana na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy – os dois pesos pesados do partido no Congresso dos EUA –, tomaram uma decisão igualmente reveladora de que estão preparados para deixarem Trump no passado: em vez de se despedirem do Presidente que ajudaram a segurar na Casa Branca nos últimos quatro anos, vão juntar-se ao novo Presidente numa missa.

A decisão de McConell e de McCarthy é notável, e diz bem da capacidade de Washington para sarar feridas e seguir em frente. Há duas semanas, o líder da minoria republicana na Câmara dos Representantes era um dos nomes na lista dos congressistas que apoiavam o Presidente Trump na sua luta contra a certificação da eleição de Biden; esta quarta-feira, vai estar ao lado do Presidente eleito, quando podia estar na Base Aérea Andrews, no Maryland, a despedir-se de Trump.

E até a forma como os convites para a despedida de Trump foram enviados levou os seus críticos a encontrarem indícios de uma certa amargura. Anthony Scaramucci, que esteve apenas dez dias como director de comunicação da Casa Branca e é há muito um crítico de Trump, disse que também foi convidado. “Acreditem em mim. Se um dos convites chegou até mim, é porque foram enviados para toda a gente”, disse Scaramucci.

Entre as figuras que receberam o convite está também o general John Kelly, que abandonou o cargo de chefe de gabinete em Dezembro de 2018, numa altura em que já não falava com Trump. Sem sentir a necessidade de dar uma desculpa em público, Kelly disse à CNN que tem “outros compromissos”.

Depois de dois meses marcados por um afastamento cada vez maior entre os dois grandes partidos norte-americanos, há sinais de que Washington pode estar a iniciar o percurso de regresso ao business as usual

O grande ponto de interrogação é o que pensam disso os milhões de apoiantes de Trump e as muitas dezenas de congressistas do Partido Republicano que começam a olhar até para os seus líderes como traidores. E, talvez mais importante do que isso, até onde estão eles dispostos a impedir que o resto do país consiga mudar de página.