Milícias, racistas e agitadores baralham investigações à invasão do Capitólio

Mais de 100 pessoas foram detidas por causa dos acontecimentos de 6 de Janeiro. Autoridades tentam perceber se o ataque foi planeado com antecedência e coordenado no terreno, socorrendo-se de vídeos captados por apoiantes de Trump e por jornalistas.

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Foram detidas mais de 100 pessoas por envolvimento no ataque ao Congresso dos EUA Reuters/STRINGER

A multidão que forçara a entrada no edifício do Congresso dos EUA já estava espalhada pelas várias salas e recantos do Capitólio, incluindo a sala do Senado. Em redor da secretária de Ted Cruz, um pequeno grupo de invasores pega num papel e acusa o senador republicano de traição: “Olhem, é uma objecção. Ele ia trair-nos”, diz um dos apoiantes de Donald Trump. A confusão fica esclarecida em poucos segundos – naquele contexto, a palavra objecção significa que Cruz é um deles. “OK, ele está do nosso lado, ele está do nosso lado.”

Minutos depois, com a sala do Senado já quase vazia, um solitário agente da polícia do Capitólio tenta demover um homem de cara pintada, e de chapéu com chifres na cabeça, de se sentar na cadeira do vice-presidente dos Estados Unidos da América, Mike Pence.

Por aquela altura, a invasão do Capitólio já estava muito para além de qualquer possibilidade de diálogo entre as forças de segurança e os apoiantes de Trump, como se constata num vídeo filmado pelo repórter Luke Mogelson, da revista New Yorker, publicado no domingo.

A par de um outro vídeo, com quase uma hora e meia de duração, e filmado por um dos participantes na invasão, John Sullivan, são dois exemplos de como as investigações policiais estão a usar a exposição das redes sociais para perceberem melhor o que aconteceu no dia 6 de Janeiro.

Com a multidão a caminho das salas do Senado e da Câmara dos Representantes, vários pequenos grupos de polícias vão cedendo passagem perante a ameaça de caos total, e quando o “xamã do QAnon” quis sentar-se na cadeira do vice-presidente, pouco ou nada podia fazer o agente que tinha ficado para trás na sala do Senado. Jake Angeli – o homem do chapéu com chifres – pega então numa das folhas de Mike Pence e escreve nela uma mensagem ameaçadora: “É só uma questão de tempo. A Justiça está a chegar!”

Ataque planeado?

Tanto Jake Angeli como John Sullivan foram detidos e acusados de vários crimes. São duas das mais de 100 pessoas que a polícia deteve em menos de duas semanas, numa operação que parece estar ainda longe de produzir o resultado mais esperado: a resposta à pergunta sobre se a primeira invasão do Capitólio dos EUA desde 1814 foi o resultado da perda de controlo por uma multidão enfurecida, ou se foi o resultado de um ataque planeado e coordenado que se aproveitou de uma multidão enfurecida para fragilizar as estruturas de poder do país.

O caso de John Sullivan – um agitador que esteve presente em protestos anti-racismo, no Verão passado, ao lado do movimento Black Lives Matter – é sintomático do puzzle que os investigadores estão a tentar compor, na sua tarefa de separar os invasores do Capitólio em vários grupos: os agitadores, os eleitores de Trump que se sentem enganados, os apoiantes das teorias da conspiração mais rebuscadas, os supremacistas brancos e as milícias armadas.

É da construção deste puzzle que depende a resposta a uma outra pergunta, mais sinistra: o que aconteceu no dia 6 de Janeiro foi o fim de quatro anos de radicalização, ou foi o início de um período de alerta máximo contra possíveis atentados como o que aconteceu no estado do Oklahoma em 1995? O principal autor desse atentado, Timothy McVeigh, era um supremacista branco e veterano da guerra do Golfo que se radicalizou em dois anos, após os cercos de Ruby Ridge (1992) e de Waco, no Texas (1993), ambos protagonizados por agentes federais – numa época, à semelhança do que acontece agora, marcada por uma grande desconfiança de parte da população sobre os verdadeiros motivos do Governo federal, acusado de querer tirar as armas aos cidadãos.

"Ameaça à democracia"

Entre os grupos que estão a ser investigados como possíveis ameaças nos próximos tempos nos EUA destacam-se as milícias nacionalistas Oath Keepers e Three Percenters, ambas constituídas por antigos militares e agentes da polícia. Nos últimos dias, quatro elementos de grupos extremistas foram acusados de vários crimes pela sua participação no ataque ao Capitólio – entre eles, o antigo marine Donovan Crowl, de 50 anos, que combateu na guerra do Golfo, tal como Timothy McVeigh.

Segundo a acusação, Crowl e a antiga militar do Exército Jessica Watkins, de 38 anos, estavam no Capitólio, no dia 6 de Janeiro, num grupo de “oito a dez indivíduos vestidos com equipamento paramilitar, incluindo capacetes, coletes à prova de bala e roupa com insígnias dos Oath Keepers”. 

E no domingo, foram conhecidas duas novas acusações contra indivíduos ligados a milícias extremistas: Jon Schaffer, um conhecido guitarrista e fundador da banda de heavy metal Iced Earth, também membro dos Oath Keepers; e Robert Gieswein, líder de um grupo paramilitar chamado Woodland Wild Dogs. 

Segundo o jornal Washington Post, os investigadores referem-se aos mais de 100 detidos até agora como “arraia-miúda”, e dizem que estão à procura de indivíduos que foram vistos a comunicar via rádio. “Há indícios de que houve uma organização à entrada do Capitólio”, disse o procurador Michael Sherwin, responsável pela capital dos EUA.

“O nosso problema já não é a polarização”, disse ao New York Times, esta segunda-feira, uma especialista em psicologia política na Universidade do Maryland, Liliana Mason. “O nosso problema, agora, é a ameaça à democracia.” 

Num alerta do que pode ainda acontecer nos EUA, muito depois da tomada de posse do Presidente eleito, Joe Biden, na quarta-feira, a especialista diz temer que o país esteja a caminho de um período semelhante aos Troubles – o conflito armado de três décadas na Irlanda do Norte que fez mais de 3500 mortos.

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