Como explicar aos mais velhos que este ano o Natal tem de ser diferente?

De forma simples e objectiva. É assim que alguns especialistas indicam que deve ser feita a comunicação aos idosos de que o Natal este ano “vai ter de ser diferente” e que a reunião tradicional familiar não vai acontecer por culpa do coronavírus.

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Steve Buissinne/Pixabay

Há idosos que querem passar o Natal com a família toda ou quase toda, tal como habitualmente acontecia. Os familiares mais próximos, para não os colocar em risco de contrair o vírus, não o querem fazer. É preciso encontrar uma forma de lidar com isso e perceber como comunicar. A hierarquia familiar inverte-se e são os filhos ou outros parentes mais novos a proteger os mais velhos – estes que fazem parte de um dos grupos mais vulneráveis.

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Há idosos que querem passar o Natal com a família toda ou quase toda, tal como habitualmente acontecia. Os familiares mais próximos, para não os colocar em risco de contrair o vírus, não o querem fazer. É preciso encontrar uma forma de lidar com isso e perceber como comunicar. A hierarquia familiar inverte-se e são os filhos ou outros parentes mais novos a proteger os mais velhos – estes que fazem parte de um dos grupos mais vulneráveis.

“É um diálogo complicado e, em alguns casos, o Natal vai ser passado de uma forma muito diferente”, assegura Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra, ao PÚBLICO. Na opinião do especialista, deve-se dizer aos idosos que no Natal “as coisas vão continuar a ser como estão a ser agora” e, por isso, é que não se podem juntar muitas pessoas.

“Pode haver alguma dificuldade por parte dos idosos em compreender o impacto de um eventual contágio ou também porque as pessoas avaliam a situação estando já na fase final das suas vidas e isso é pesado para os mais velhos”, diz Renata Benavente, psicóloga clínica com publicações de psicogerontologia e membro da Direcção Nacional da Ordem dos Psicólogos. O que pensam é que “o pouco de tempo de vida que lhes possa restar está a ser, no fundo, retirado” e, por isso, “é natural que haja uma pressão por parte das pessoas mais velhas”.

Luís Nogueira, médico de Medicina Geral e Familiar com Competência em Geriatria da CUF, explica que se deve utilizar “uma linguagem simples” para falar sobre o assunto. Esta situação de recusar grandes reuniões familiares vem “do culminar para as famílias de um ano difícil, em que isso deixa marcas e é um momento de tristeza e desilusão”, até porque “a socialização é crucial para o bem-estar físico e psíquico”, mas nesta fase é “algo muito complexo”. O fundamental “é passar a mensagem que melhores dias virão, porque o importante é ter saúde”.

Júlio Machado Vaz conta que está “há um ou dois meses a ouvir as pessoas a falar sobre as preocupações do Natal” e, enquanto especialista, tenta pensar “em paralelo” com os idosos. “Naqueles que estão na posse das suas faculdades, tenho a obrigação de ter a certeza que têm toda a informação nas mãos para tomar decisões e para porem na balança os dados para decidirem o que fazer, se vão aceitar, se vão discutir ou que condições vão propor”, diz, acrescentando que não se pode “infantilizar” os idosos, advertindo que “há muito a tendência” de o fazer.

“Acho arriscado pormos em causa o que conseguimos nestas últimas semanas só por um evento que não se diz que não se pode falhar”, comenta, por sua vez, Luís Nogueira, que considera que “muitas famílias optam por não fazer [neste Natal] o que faziam, porque não querem sobrecarregar ou originar um foco de infecção em alguém que está em risco”.

De acordo com o médico, “esta questão do Natal é importante, não só pelo contacto, mas também pelas medidas, porque é difícil limitarmos o afecto dentro de casa” e determinar a distância ideal com as restantes pessoas à mesa. É importante estar a par das normas da DGS, conhecer os riscos e minimizá-los. “Quando estamos a adoptar comportamentos que assegurem a nossa protecção estamos também a contribuir para proteger os que nos rodeiam”, acrescenta Renata Benavente.

Pequenos natais ao longo do ano

A psicóloga indica ainda que o primeiro passo é “reconhecer que passar por isto é complicado, até porque há famílias que só se viam com todos os elementos na altura do Natal, uma vez por ano”, por morarem noutra cidade ou país. “A época do Natal tem uma carga simbólica importante e já traz algumas vulnerabilidades psicológicas, pois são fases do ano em que, por norma, nos recordamos das pessoas que já partiram ou que não estão presentes”.

“Noto que, mais do que só num único dia, são pequenos contactos ao longo do ano que fazem toda a diferença, os pequenos natais ao longo do ano”, diz Luís Nogueira. O fundamental agora “é criar objectivos mais para diante”, ou seja, “pensar que a reunião familiar anual não foi no Natal, mas pode ser no aniversário, por exemplo”. Além disso, pensar que “a questão da vacina veio levantar alguma esperança”.

Mas nem todos os idosos são iguais. Há casos em que as capacidades cognitivas estão muito fragilizadas e a demência passa a ser uma realidade. Nos casos de demência agravada, “a compreensão pode estar reduzida e não ter grande impacto” a ausência de familiares nesta época festiva, refere Manuela Guerreiro, investigadora de neuropsicologia do envelhecimento e demências e membro da Comissão Científica da Alzheimer Portugal.

“É mais difícil gerir a nível emocional para um idoso sozinho e isolado, tendo ou não demência”, mas “nas demências mais graves não estão sozinhos”. Quando a demência é ligeira, “tem de existir uma explicação objectiva e sem dramatização”, sendo crucial informar de “forma tranquila” porque “às vezes, mais importante do que as palavras, é o modo como se diz”. Pode existir defeito de compreensão do idoso doente, para além do defeito de memória e, por isso, tem de haver “um esforço acrescido da família para passar a mensagem”.

Se o idoso doente persistir em passar o Natal com a família é necessário que “um ou dois elementos passem o Natal” com o idoso e que “os outros elementos lhe telefonem” para lhe ir “sendo explicada a situação várias vezes, repetidamente”, o que vai resultar em muitos casos, mas não em todos. A especialista aconselha que “não seja utilizada, pelo menos de forma demasiado assertiva e ríspida, a palavra ‘não’ aos pedidos do doente e substituir por termos como ‘sim, tens razão, mas nesta altura teremos de fazer de outro modo’.

O crucial é que “o idoso, com ou sem demência, não sinta a ausência da família como abandono e, para isto, não há receitas, pois cada família tem a sua dinâmica e é dentro dessa dinâmica que a proximidade, sem a presença física, tem de ser estabelecida”.

Os laços familiares podem-se alterar

E, no caso de passarem as festividades distantes, a preocupação também pode passar pelos laços familiares. Será que se podem perder ou até fortalecer? A distância pode ser de todos os familiares ou parte deles. Uns idosos vão ficar em casa, outros em hospitais e ainda há aqueles que vão permanecer nos lares. Mas há alternativas para se manter o contacto, até porque “a solidão também mata”, diz Júlio Machado Vaz.

“Há 20 anos a separação seria ainda mais literal do que é hoje em dia”, explica Manuela Guerreiro. As tecnologias permitiram que o distanciamento fosse “menos trágico para as pessoas”, apesar de “nunca ser igual” ao contacto físico. E porquê? “Não é só a questão da presença, é também tudo aquilo que está envolvido em termos de comportamentos”.

O médico Luís Nogueira partilha uma opinião semelhante, destacando a relevância de utilizar as plataformas digitais “como se calhar nunca foram utilizadas para minimizar este isolamento”, apesar de isso “não substituir”. No entanto, o especialista indica que, ao contrário do que se pensa, “os idosos não são tão infoexcluídos quanto isso” e “ver fotografias ou vídeos de um neto a crescer durante três meses funciona de forma fantástica para eles em termos de melhoria da qualidade de vida, particularmente da saúde mental”.

Renata Benacente refere que “a componente emocional e afectiva das relações pode estar presente mesmo que não estejamos no mesmo espaço físico”. Mas é certo que, para alguns idosos é mais difícil, porque “podem não ter a mesma facilidade” de aceder às tecnologias. Para aqueles que sentem a necessidade de serem ouvidos e terem companhia, podem contactar a linha da Saúde 24 que tem, desde Abril, serviço de aconselhamento psicológico.

Os laços, esses, podem-se alterar. De acordo com Manuela Guerreiro, “a afectividade e a proximidade emocional pode aumentar”, como também existir um distanciamento nesse aspecto. Contudo, deixa a mensagem positiva que conhece casos em que os laços ficaram muito mais fortes. Seja com uma barreira física ou através das tecnologias, o importante é encontrar formas de estabelecer contacto e manter a esperança de que a situação vai melhorar, para que, “em 2021, possamos passar o Natal com todos os familiares e que todos tenham saúde”, conclui a psicóloga.