O que já se sabe (e o que ainda falta saber) sobre o SARS-CoV-2

As incógnitas sobre o coronavírus SARS-CoV-2 ainda são muitas. Mas o que já sabemos mesmo? Fazemos o ponto da situação desde os efeitos do vírus no corpo humano até ao impacto das suas mutações.

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SARS-CoV-2 NIAID

A cada minuto que passa surgem novas informações (ou pistas) sobre o coronavírus que entrou nas nossas vidas, o SARS-CoV-2. Mesmo no curto intervalo de tempo que separa a finalização e a publicação deste artigo surgirão essas novas pistas. No meio da avalanche de informação, o que já se sabe mesmo sobre este vírus e a doença que causa, a covid-19? Cerca de um ano depois de termos tido conhecimento dos primeiros casos na China, façamos um ponto da situação sobre o SARS-CoV-2.

Quando perguntamos a Celso Cunha o que se sabe sobre o vírus, o virologista imediatamente enumera alguns aspectos: sabemos que é um vírus da família do mesmo vírus do SARS-CoV, que causou uma epidemia em 2003; conhecemos o seu genoma e a constituição das suas proteínas; temos conhecimento do modo como se replica e as células que infecta. “Mas é evidente que aquilo que conhecemos não é nada e o conhecimento que está pela frente é sempre mais do que aquilo que sabemos”, afirma o investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em Lisboa.

Devido ao seu impacto na saúde pública, o virologista explica que tem existido muita investigação e publicação de resultados sobre este coronavírus sobretudo a nível da investigação clínica e epidemiológica – que podem assim ter impacto directo no controlo da pandemia. “Porque é que infecta certas células ou causa danos em pessoas com doenças associadas são grandes questões que ainda não sabemos e que só vamos saber quando tivermos uma noção mais exacta da biologia fundamental do vírus”, indica. E essa investigação básica é mais demorada e terá impacto daqui a uns anos.

No meio de tanta informação nova, Celso Cunha diz que é possível encontrar um estudo que contraria o outro e que se tem de ter atenção ao valor do que é publicado. “A maioria das coisas que está a ser publicada vai valer pouco em termos científicos daqui a um ou dois anos. Estamos a ter uma avalanche de informação em que quem trabalha com este vírus tem de ter cuidado.”

Também questionámos Maria João Amorim sobre o conhecimento que já possuímos sobre este vírus. E a virologista do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, logo respondeu: “Boa pergunta! Sabemos qual é o genoma, quais as proteínas que produz, que tecidos infecta, como consegue infectar as células, que tipo de resposta imunitária desencadeia dependendo da doença que o indivíduo infectado desenvolver, e sabemos como produzir vacinas.” Diz ainda que ficámos a saber também algo muito importante: “Que a comunidade científica se consegue reunir para dar uma resposta relâmpago a um problema como este e, que neste ambiente, é capaz de dispor das descobertas de uma forma livre.”

Passo a passo, olhemos para este vírus com a ajuda dos dois virologistas.

A transmissão: das gotículas aos aerossóis

A transmissão pode acontecer através de gotículas respiratórias quando alguém tosse ou espirra, pelo contacto directo com pessoas infectadas, superfícies com o vírus, ou por aerossóis (partículas aéreas de muito pequena dimensão que pairam no ar). Nos aerossóis pode ocorrer sobretudo em ambientes fechados. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a principal forma de transmissão é por gotículas respiratórias quando as pessoas estão mais próximas, daí ser recomendado distanciamento físico de dois metros e uso de máscara facial.

Replicação semelhante à de outros coronavírus

De forma geral, sabe-se que as portas de entrada deste vírus são a boca, os orifícios nasais ou que também poderão ser os olhos. Mas como se replica no nosso corpo? “O ciclo de replicação deste vírus é semelhante ao de outros coronavírus”, esclarece Celso Cunha. Ao infectar células do tracto respiratório superior, como as do nariz, o SARS-CoV-2 tem uma proteína à sua superfície que se consegue encaixar com uma proteína que células humanas têm à sua superfície, a ACE2. Depois desse encaixe, a membrana da célula começa a sofrer uma alteração, metendo-se cada vez mais para dentro, e o vírus acaba por ser engolido.

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A covid-19 apresenta diferentes tipos de sintomas e gravidades Mário Cruz/Lusa

Quando entra na célula, o vírus vai para o citoplasma (um dos compartimentos da célula), onde inicia o seu ciclo de replicação. Aí, o vírus retira um casaco que tem vestido (o seu invólucro) e o seu material genético vai ficando exposto dentro da célula. Começa então a replicação do material genético do vírus e produzem-se proteínas designadas “precoces” (que têm um papel na própria replicação do genoma do vírus) e, mais tarde, das “tardias” (as que constituem o invólucro e vão formar novos casacos do vírus).

Depois de formar as novas partículas virais (isto é, o material genético do vírus e proteínas que formam o invólucro), o vírus vai fazer o trajecto inverso e dirige-se à membrana celular. Por fim, normalmente, funde-se com a própria membrana e sai para o exterior envolto com uma camada de lípidos que teve origem na membrana celular. Ao sair, vai infectar outras células ao seu lado e começa assim a formar-se uma zona com essas células infectadas. Ao entrar na corrente sanguínea, pode infectar outros órgãos que tenham o receptor ACE2.

Pode deixar marcas em várias partes do corpo

Os receptores que permitem que o vírus entre no corpo estão em muitos locais, como nos vasos sanguíneos, no fígado, nos pulmões, no coração e nalgumas células do sistema nervoso. “Todos os órgãos que têm receptores para esse vírus são potenciais locais onde ele se pode multiplicar e causar danos,” assinala Celso Cunha. “Embora a infecção principal e os sintomas estejam mais associados a uma doença respiratória, é muito natural que estejamos na presença de um vírus capaz de se replicar e de se alojar em muitas partes do nosso corpo”, esclarece o virologista, adiantando que, apesar de poder estar a causar danos em diferentes órgãos, ainda há poucos dados de autópsias.

Aumentar

Ao contrário de outros vírus, este coronavírus pode causar directamente pneumonias. Diarreias poderão estar associadas à replicação do vírus em células do tracto gastrointestinal. Alguns distúrbios neurológicos, como perdas de memória e depressões, podem estar ligados à sua replicação nas células do sistema nervoso. Ou o facto de haver pessoas com doenças coronárias pode estar associado à capacidade de o vírus entrar nas células dos vasos sanguíneos. Contudo, ainda é necessária mais investigação para se conhecerem bem as sequelas a longo prazo.

Referindo que ainda é difícil conhecer os efeitos no corpo a curto, médio e longo prazo, Maria João Amorim acrescenta a existência de perda de olfacto, o aparecimento de manchas nos pés e nas mãos e ainda uma síndrome inflamatória em crianças. Em autópsias, também já se encontrou este vírus nos rins e no coração.

A virologista diz ainda que, no caso de doença moderada, há uma infecção nos pulmões que o organismo conseguirá resolver. Já nos casos graves o vírus deixa de estar só nos pulmões e pode infectar outros órgãos. “Sabemos que aí pode provocar muitas complicações, mesmo a nível da capacidade pulmonar, levando a dificuldades respiratórias e, numa percentagem bastante significativa, à morte.”

Há diferentes tipos de sintomatologia

A covid-19 apresenta diferentes tipos de sintomas e gravidades. Contudo, não se sabe bem porque é que há sintomas tão diferentes de pessoa para pessoa e associados a patologias de vários órgãos. Celso Cunha refere que se tem vindo a verificar que isso pode estar relacionado com três factores: o sistema imunitário de cada um; o microbioma (composto por biliões de organismos microscópicos que vivem no corpo); e os factores genéticos. “Dentro de cada um deles há muitas questões em aberto e, neste momento, o esforço é feito mais em relação ao sistema imunitário devido ao impacto mais rápido que pode ter nas vacinas e tratamentos.”

Tempestade de proteínas nos casos graves

E o que leva a que haja casos mais graves? “Essa é a resposta de um milhão”, responde Maria João Amorim. “É aquilo que toda a gente procura e precisamos de saber quais são os marcadores que nos possam dizer que é doença severa.” Por agora, está associado à idade ou a comorbidades associadas, como as doenças cardíacas. Contudo, a virologista reforça que falta ainda saber quais são os marcadores para se determinar quais são as pessoas que desenvolvem doença grave, moderada ou quem é assintomático.

Frisando que ainda há que saber muito, Celso Cunha adianta que, normalmente, os casos graves estão associados a uma tempestade de citocinas, proteínas que são libertadas por células do sistema imunitário, e que podem causar reacções inflamatórias graves ou provocar insuficiências dos pulmões ou noutro tipo de órgãos. Depois, destaca também a idade e as doenças que lhes estão associadas, como a diabetes e doenças cardiovasculares. “Quando somos mais velhos, o sistema imunitário, tal como os órgãos, começa a funciona pior e somos capazes de responder com menor eficácia a infecções.”

O papel das crianças

Qual é mesmo o papel das crianças na transmissão? “É importante referir que não sabemos muito bem o papel das crianças nesta infecção”, nota Maria João Amorim. Já houve estudos que sugeriram que seriam menos susceptíveis, mas há outros que concluíram que, apesar de os mais jovens terem sintomas mais leves da doença, também representam um risco de contágio como o dos adultos. Um estudo de investigadores do Hospital Geral do Massachusetts (Estados Unidos) verificou mesmo que as crianças podem ter cargas virais maiores do que a de adultos doentes, mas que ficam assintomáticas ou têm manifestações leves da doença. “Quando a infecção está controlada ao nível da comunidade, as suas infecções não parecem originar novos surtos, mas no caso de infecção descontrolada e comunitária acabam por ser a consequência e não a causa de novos surtos”, assinala a virologista.

As incógnitas na imunidade

Quanto à imunidade que alguém que esteve infectado tem, sabe-se que, dependendo do tipo de doença (assintomática, moderada ou grave), o sistema imunitário guarda memória da infecção de forma gradual. “Os assintomáticos são os que têm o desenvolvimento de anticorpos neutralizantes e de menos células T [que são capazes de reconhecer o vírus]”, lembra Maria João Amorim. “As pessoas que têm uma doença grave são as que têm mais.” Também já alguns estudos mostraram que as pessoas continuam protegidas ao fim de, pelo menos, sete meses depois da infecção. Contudo, como relembra a virologista, ainda não sabemos os efeitos a longo prazo, porque ainda não passou tempo suficiente para isso. Já os casos documentados de pessoas reinfectadas são poucos e, como realça Celso Cunha, as pessoas terão sintomas mais ligeiros. 

A imunidade de grupo também tem gerado muitas questões e o virologista diz ter a certeza de algo: não será alcançada de forma natural e será mesmo necessária a vacinação. Já houve estudos que apontaram que 20% da população tinha de estar imunizada e outros indicaram cerca de 70%. “Estamos, muito provavelmente, numa situação clássica em que se precisará de 70% da população imunizada e de forma natural não vamos conseguir isso.” Senão teria de haver muitas mortes e casos desnecessários. “Seria eticamente impensável fazer uma coisa dessas.” Maria Amorim acrescenta: “A imunidade de grupo como o facto de as pessoas estarem imunes à infecção e impedir que as outras sejam infectadas é capaz de ser um bocadinho difícil. Aquilo que se pensa é que se poderá atingir um equilíbrio e que a doença possa ser menos severa e a pessoa possa ter menos sintomas severos.”

Questões sobre a importância das mutações

As mutações genéticas fazem parte do processo natural de evolução de um vírus. Será que há algumas que podem ser prejudiciais? Para este vírus já se descreveram milhares de mutações e, geralmente, a sua taxa de mutação é de cerca de duas mutações por mês no seu genoma (ou seja, as mutações que vai acumulando), o que é baixo comparando com a maioria dos vírus deste tipo.

“Estas mutações são úteis porque nos permitem seguir o vírus, mas saber exactamente o efeito que têm ao nível da transmissão é extremamente difícil”, indica Maria João Amorim. Celso Cunha refere que, até agora, não houve nenhuma que mostrasse ter impacto nas vacinas que foram e estão a ser desenvolvidas. “Em termos de patologia, penso que é muito prematuro dizer que uma certa mutação está relacionada com sintomas mais leves ou graves.”

Há uma mutação que tem dado mais nas vistas, a D614G. Tem sido encontrada na maioria dos genomas sequenciados do vírus, mas ainda não é claro se contribui para a transmissibilidade ou virulência do vírus. Um estudo publicado na revista Nature em hamsters já sugeriu que pudesse, de facto, aumentar a transmissibilidade do vírus, mas nada se viu sobre se torna a doença mais grave. Outro estudo na revista Nature Communications indica que nenhuma das mutações descobertas até agora parece tornar o vírus mais contagioso, incluindo a D614G. A equipa foi liderada por cientistas da University College de Londres e analisou dados de mais de 46 mil genomas do vírus.

Ao contrário de outros vírus com ARN, o SARS-CoV-2 tem um genoma grande (com 30 mil bases, ou “letras”). Enquanto outros vírus com ARN não têm um controlo de qualidade como têm os vírus com ADN, o novo vírus consegue corrigir erros durante a síntese do ARN-mensageiro (que depois é usado na sintetização de proteínas) e na replicação do ARN viral. Por isso, tem um genoma maior e as mutações são menos frequentes do que em vírus de ARN.

A investigação sobre a origem do vírus

Os primeiros casos desta pandemia foram detectados na China. Já se pensou que tivesse tido origem num mercado da cidade chinesa de Wuhan, devido a casos iniciais de pessoas que aí estiveram. “Wuhan foi onde o coronavírus começou por ser detectado, mas não é onde teve origem”, afirmou Zeng Guang, epidemiologista do Centro Chinês para o Controlo e Prevenção de Doenças, citado pelo jornal The Guardian. “Ainda é pouco claro se o mercado foi uma fonte de contaminação, se foi um amplificador para o contágio entre humanos ou se foi uma combinação desses factores”, referiu em comunicado a OMS, que tem em curso uma missão para determinar a origem do vírus.

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Já se questiona a possibilidade de uma terceira vaga Diogo Ventura/Público

Esta missão teve em Outubro a sua primeira reunião por videoconferência e é integrada por dez especialistas chineses e dez internacionais. A primeira fase é em Wuhan, depois irá para outras partes da China e passará também para outros países. De acordo com o jornal El País, nesta fase, só os especialistas chineses estarão no terreno. Os restantes darão apoio à distância e só viajarão para aí depois de terem sido analisados os resultados dos trabalhos iniciais. Numa segunda fase, serão feitos estudos a longo prazo.

Por agora, uma das hipóteses mais prováveis é que este vírus tenha tido origem em morcegos, que são reservatórios de coronavírus. Quando a primeira sequenciação do SARS-CoV-2 ficou disponível em Janeiro, verificou-se que tinha cerca de 96% de parecenças genéticas com um vírus de um morcego da província chinesa de Yunnan, a alguns quilómetros de Wuhan. Já se sugeriu que o hospedeiro intermediário entre o morcego e o humano pudesse ser o pangolim (pois encontrou-se um coronavírus no pangolim com 99% de parecenças com o SARS-CoV-2), mas o pangolim não é um reservatório natural do vírus porque adoece e morre, nota Celso Cunha. Também já surgiram declarações de que o vírus já estaria a circular antes da epidemia em Wuhan.

“A questão de onde vem o vírus é extremamente importante porque assim conseguimos impedir novas reentradas na população”, avisa Maria João Amorim. “Monitorizando-se os animais intermediários consegue-se perceber se há estirpes que estão a ganhar capacidade de ser transmitidas.”

Vai haver uma terceira vaga?

Ainda a vivermos uma segunda onda de infecções, já se questiona se existirá uma terceira vaga. Celso Cunha refere que é uma possibilidade, mas que depende de muitos factores e ainda é um pouco prematuro falar disso. “Mesmo atendendo ao pressuposto de que se vai manter o confinamento mais ou menos elevado nas próximas semanas e que vai começar a haver alguma vacinação, é possível que possa haver uma terceira vaga até à Primavera”, aponta, destacando que não se sabe quando será nem a sua dimensão. O virologista refere que, se o confinamento for mantido, se o número de contactos for reduzido e a vacinação acontecer, até se poderá evitar. Maria João Amorim também diz que tudo depende de quando começar a vacinação e de quão eficaz for. “Está dependente de muitas questões.”

O que é urgente saber

Dentro das muitas questões que ainda precisam de respostas, Celso Cunha realça que há várias em relação às vacinas, nomeadamente se é igualmente eficaz em todos os grupos etários ou se a sua eficácia é longa. “Vamos ter de tomar a vacina todos os anos? Ou de dez em dez anos? São tudo questões que não conseguimos responder agora.” Além de questões ligadas ao desenvolvimento das vacinas, o investigador coloca outras relativas à ciência fundamental, como porque é que o vírus tem a capacidade de se manter estável num genoma tão grande, como as proteínas interagem entre si ou se há alvos terapêuticos que impeçam a replicação do genoma do vírus e consigam interferir com certas actividades do seu ciclo. “[Assim conseguir-se-á] desenvolver fármacos que consigam interferir com elas, mas para isso tem de se responder a questões de ciência básica.” De algo parece ter a certeza: “O vírus vai continuar a acompanhar-nos, tal como nos acompanham outros vírus respiratórios com que temos tido contacto ao longo de séculos.”

Já Maria João Amorim refere que temos mesmo de conseguir determinar quem são as pessoas infectadas a transmitir a doença e durante quanto tempo o transmitem. Depois, ainda há que entender melhor a origem do vírus, o papel das crianças e dos assintomáticos na transmissão, quanto tempo dura a imunidade (quer a nível da infecção natural ou da vacinação), como a sociedade se poderá reorganizar para impedir de forma rápida situações como as que estamos a viver, ou como a OMS se pode reforçar relativamente à monitorização destes problemas.

E deixa um aviso: “Estamos extremamente cansados, mas o vírus não está! O facto de estarmos cansados pode facilitar a transmissão viral.”