Carla viu a “devastação” do vírus e voluntariou-se para receber a vacina de Oxford

Terapeuta ocupacional no Serviço Nacional de Saúde britânico, Carla Freitas, portuguesa a viver em Londres, acompanhou em primeira mão os efeitos que a covid-19 “estava a ter nas pessoas”. Decidiu ser voluntária para receber a vacina de Oxford/AstraZeneca, uma das mais avançadas nas fases de ensaios.

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Foi através do Twitter que Carla Freitas soube que uma equipa da Universidade de Oxford, em Inglaterra, procurava voluntários para testar uma das primeiras vacinas contra a covid-19. Nesses dias finais de Abril, pouco se sabia sobre a doença causada pelo novo coronavírus e ainda menos sobre uma potencial vacina, mas a portuguesa, que em 2011 rumou a Londres para estudar, decidiu arriscar. Estava ciente dos riscos, mas também sabia que aquela universidade tinha uma grande reputação no desenvolvimento de vacinas e que não a aceitariam para o estudo se a nível médico houvesse alguma coisa que não o permitisse.

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Foi através do Twitter que Carla Freitas soube que uma equipa da Universidade de Oxford, em Inglaterra, procurava voluntários para testar uma das primeiras vacinas contra a covid-19. Nesses dias finais de Abril, pouco se sabia sobre a doença causada pelo novo coronavírus e ainda menos sobre uma potencial vacina, mas a portuguesa, que em 2011 rumou a Londres para estudar, decidiu arriscar. Estava ciente dos riscos, mas também sabia que aquela universidade tinha uma grande reputação no desenvolvimento de vacinas e que não a aceitariam para o estudo se a nível médico houvesse alguma coisa que não o permitisse.

A portuguesa de 31 anos, que terminou o mestrado em 2012, começou a trabalhar no ano seguinte como terapeuta ocupacional no Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS, na sigla original). Em Abril deste ano, quando os casos de covid-19 disparavam em muitos países, Carla teve uma experiência semelhante a muitos colegas: começou a tratar doentes covid-19. No início eram casos menos graves, mas a situação mudou rapidamente e o Reino Unido tornou-se um dos países mais afectados pela pandemia da Europa.

“Comecei a ter um contacto muito directo com os efeitos que o coronavírus estava a ter nas pessoas. Tive um paciente que estava a acompanhar há seis meses que faleceu com o vírus. Foi uma experiência bastante negativa na minha carreira, era uma pessoa com quem já tinha uma ligação e foi bastante difícil superar. O meu trabalho era fazer a avaliação funcional e contribuir para o planeamento da alta de cada pessoa. Havia casos em que num dia o doente estava bem e no dia a seguir tinha falecido. É uma doença muito cruel, as pessoas parecem estar a evoluir positivamente e, de repente, as coisas mudam”, conta Carla ao telefone com o PÚBLICO.

Por entender que “a única forma de sair desta pandemia seria uma vacina”, decidiu voluntariar-se para a primeira fase dos ensaios clínicos da terapia que o laboratório britânico AstraZeneca e a Universidade de Oxford estavam a desenvolver, que decorreram logo em Maio.

Apesar de ser saudável e de cumprir quase todos os requisitos pedidos pela equipa — incluindo poder ir a pé ou de carro até ao local da vacinação — Carla achou que não seria aceite por ser profissional de saúde e fazer parte do grupo de trabalhadores essenciais que continuaram a laborar mesmo durante o primeiro confinamento imposto pelo governo de Boris Johnson. Mas os cientistas estavam com dificuldades em recrutar voluntários porque grande parte da população inglesa tinha ordens para ficar em casa. E a portuguesa acabou por fazer parte do grupo de pessoas que seria vacinado.

Fadiga e dores de cabeça

Depois de uma avaliação inicial ao estado de saúde e de ser submetida a vários testes (como o de anticorpos), Carla soube que não estava nem tinha estado infectada com o SARS-CoV-2 (um critério de exclusão automático) e pôde ser vacinada logo no dia seguinte. “Foi uma coisa muito repentina, não estava à espera. Foi a primeira vez que participei num ensaio clínico, mas, como trabalho num ambiente hospitalar, estou bastante habituada a certas coisas. Quando cheguei, deram-me uma pulseira hospitalar, o que me deixou um pouco assustada, mas a equipa foi sempre extremamente profissional e mostraram-me toda a informação que tinha disponível até ao momento”, conta.

Para a equipa de Oxford, a covid-19 veio fortalecer o processo de elaboração de um tipo de vacinas que já tinha sido iniciado com a prevenção de outros coronavírus, como lembra a voluntária. Já estavam a trabalhar para combater a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que foi identificada pela primeira vez em 2003, e essa pesquisa funcionou como base para esta nova vacina.

Depois de aplicada a vacina, Carla e os restantes 1076 voluntários tiveram de ser observados durante uma hora para ser feita a mediação da pressão arterial e dos níveis de oxigénio. Metade recebeu o placebo e a outra metade a potencial vacina da covid-19. Só no fim de todas as fases dos ensaios os voluntários saberão qual receberam.

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Todos, sem excepção, levaram para casa uma lista de coisas a fazer na primeira semana e nos meses seguintes: medir a temperatura, estar atentos a sintomas, contactar a equipa se sentissem que algo estava fora do normal. Todas as semanas têm de responder a um longo questionário — se estiveram com alguém com covid-19, se viajaram, se foram ao cinema, se as pessoas com quem vivem tiveram sintomas — e têm de fazer análises ao sangue frequentemente.

Carla, que toma desde sempre a vacina da gripe por trabalhar na área da saúde, diz que sentiu alguns sintomas secundários que normalmente não tem. “Senti uma fadiga muito grande logo no primeiro dia e achei logo que estava associada à vacina. Nos dias seguintes senti-me tonta e tive dores de cabeça bastante fortes, algo que não costumo ter. Tomei medicação e a partir daí não tive mais problema nenhum.”

Uma segunda dose

Antes mesmo de a equipa de Oxford e da AstraZeneca divulgar que os dados preliminares dos ensaios revelaram que a vacina tem uma eficácia que pode variar entre os 62% (duas doses completas) e os 90% (meia dose seguida de uma dose completa), dependendo do regime de dosagem utilizado, Carla tinha sido convidada a ser vacinada novamente com a mesma vacina que tinha recebido em Maio.

Esta diferença nas dosagens levou a Universidade de Oxford a anunciar, dias depois, que alguns dos frascos usados no teste não tinham a concentração certa de vacina, o que significa que alguns voluntários receberam meia dose. A universidade acrescentou que discutiu o problema com os reguladores e concordou em concluir o teste. O problema de fabrico foi corrigido, segundo anunciaram. A farmacêutica AstraZeneca já avançou que vai realizar um “estudo adicional” para validar os resultados da eficácia.

Carla foi informada destas mudanças e aceitou ser vacinada novamente em Outubro, mesmo tendo feito parte do ensaio de primeira fase, em Maio. Continuará sem saber se recebeu a vacina de controlo em duas doses ou a vacina da covid-19 em duas doses ou numa dose e meia. Nada muda no processo, mas terá de ser acompanhada até Outubro de 2021, um ano depois da segunda vacinação.

Os resultados preliminares divulgados ainda não foram revistos pelos pares nem publicados numa publicação científica, algo que deverá ocorrer assim que estejam disponíveis resultados completos dos ensaios clínicos. É preciso aguardar por esta publicação para perceber esta diferença na eficácia.

“As visitas mensais [para acompanhamento] são opcionais e posso desistir a qualquer momento, mas o meu objectivo é continuar. Acho que é uma forma de contribuir para a ciência porque, enquanto profissional de saúde, via pessoas internadas, até colegas, e sentia que não podia ter controlo sobre a situação. Em Abril, e mesmo agora, havia pouca coisa que pudéssemos fazer para sair desta pandemia, mas acho que esta é uma delas”, diz a terapeuta especializada em neurologia. Por participar neste estudo, e se o completar até ao fim, receberá 625 libras, cerca de 716 euros.

E se a vacina não for aprovada?

Carla diz que o NHS já fez “imensos preparativos”, como vacinar muitos profissionais de saúde contra a gripe, para libertar pessoas para distribuir a vacina da covid-19. “Já nos disseram que em Dezembro deveremos receber uma das vacinas”, diz a portuguesa.

Os jornais britânicos dizem que o regulador britânico pode aprovar dentro de poucos dias a vacina do consórcio Pfizer e BioNTech, que tem uma eficácia de 95%. Mas e se essa ou outra opção for aprovada antes da vacina da Oxford/AstraZeneca ou se, algo que também está em cima da mesa, esta não for aprovada de todo? 

Nesses casos, como Carla faz parte de um dos grupos prioritários, terá o direito de telefonar aos investigadores e perguntar se recebeu o placebo ou a vacina da covid-19. “Disseram-me que ia haver transparência total e que me iam explicar quais os riscos, se eles existirem, de tomar outra vacina. Deixaram isso muito claro e todos os voluntários receberam essa directriz”, afirma.

Da vacina de Oxford falta conhecer ainda os resultados finais da fase 3 dos ensaios clínicos, mas o Reino Unido já assegurou 100 milhões de doses, juntamente com outros sete milhões de doses da vacina da Moderna e de 40 milhões da Pfizer/BioNTech — todas elas estão pendentes de aprovação pelo regulador.