Selecção das “melhores” abelhas pode tornar colónias mais vulneráveis

Biólogo português Gonçalo Espregueira Themudo é o primeiro-autor de um estudo que conclui que, no último século, houve um declínio da diversidade genética da abelha europeia.

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Uma abelha da colecção da Universidade de Coimbra que foi analisada neste estudo Universidade de Coimbra

A equipa de cientistas comparou abelhas que fazem parte de colecções europeias de história natural com outras tantas abelhas de “populações modernas” e constatou que, no último século, a Apis mellifera sofreu uma perda da diversidade genética. O estudo publicado na revista Scientific Reports, do grupo da Nature, não especifica a causa deste declínio, mas os autores sugerem que pode ser uma consequência da “selecção” que os apicultores fazem na gestão das suas colónias para terem abelhas que, por exemplo, produzam mais mel ou que sejam menos agressivas.

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A equipa de cientistas comparou abelhas que fazem parte de colecções europeias de história natural com outras tantas abelhas de “populações modernas” e constatou que, no último século, a Apis mellifera sofreu uma perda da diversidade genética. O estudo publicado na revista Scientific Reports, do grupo da Nature, não especifica a causa deste declínio, mas os autores sugerem que pode ser uma consequência da “selecção” que os apicultores fazem na gestão das suas colónias para terem abelhas que, por exemplo, produzam mais mel ou que sejam menos agressivas.

Houve, nos tempos mais recentes, uma redução do número de colmeias que foi acompanhada pelo aumento da densidade de abelhas em colónias e pela “criação em massa de rainhas”. Estas “modernas” condições das abelhas podem ter contribuído, refere o artigo científico, para “alterar processos naturais e afectar a diversidade genética da espécie, potencialmente com consequências na sua susceptibilidade para doenças e outras ameaças”.

“Concluímos que houve, no último século, um declínio na diversidade genética das abelhas na Europa. Não indicamos qual a causa, mas avançamos com a hipótese de este declínio estar associado às práticas de gestão das colónias domésticas de abelhas”, resume ao PÚBLICO o biólogo Gonçalo Espregueira Themudo, primeiro-autor do trabalho e investigador do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto.

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O investigador Gonçalo Themudo DR

A investigação foi centrada na abelha europeia (Apis mellifera) com a equipa a recorrer a indivíduos nascidos entre 1850 e 2000 para conseguir comparar a variabilidade genética. Os investigadores olharam então para as cinco linhagens já identificadas e compararam as abelhas “históricas” com as modernas, concentrando-se sobretudo em dois grupos principais (designados C e M). “Este é um dos primeiros estudos que inclui todas as cinco linhagens ao mesmo tempo”, adianta o biólogo português. A abelha-europeia possui cinco linhagens genéticas, duas delas (as linhagens C e M) ocorrem principalmente na Europa, outras duas (O e Y) no Médio Oriente, e uma (A) em África e no Sul da Península Ibérica.

“As abelhas históricas usadas neste estudo representam as linhagens M, C e O, enquanto as modernas representam as linhagens M, C, Y e A”, refere um comunicado de imprensa sobre a investigação. As cinco linhagens, diz Gonçalo Themudo, resistiram ao tempo. No entanto, há perdas a registar na diversidade genética.

“Quando começámos este estudo não tínhamos a certeza de ser capazes de detectar uma mudança em qualquer uma destas comparações, uma vez que a diferença de idade entre estas abelhas é de apenas 100 anos. Foi muito surpreendente encontrar diferenças em todas as comparações que fizemos”, diz a autora principal do estudo, Paula F. Campos, citada no comunicado do Ciimar.

O biólogo dá um exemplo: “Um dos genes que identificámos está ligado à produção de geleia real, um dos produtos procurados pelos apicultores. Também há outras características que os apicultores preferem como, por exemplo, abelhas menos agressivas ou que não façam enxames. Mas a característica que vemos de forma mais clara que está a ser seleccionada é a de produção de geleia real”.

No artigo, os autores falam ainda que foi notada ainda uma falha na “função de limpeza” do complexo sistema das colmeias. “Uma das coisas que parece estar associada com a perda de colónias ultimamente é que as larvas doentes não são retiradas das colmeias Os indivíduos que fazem esta tarefa não estão lá ou não têm esse comportamento devidamente codificados nos genes”, confirma o investigador, concluindo que esta falha pode também prejudicar as populações porque as torna mais vulneráveis a doenças, por exemplo.

O que nos leva a outra das ameaças que pairam sobre as colónias de abelhas. Doenças provocadas pelos ácaros Varroa e por outros agentes patogénicos têm provocado uma elevada mortalidade nas colmeias ao longo das últimas décadas. “Havendo uma diminuição da variabilidade genética, pensa-se que a resposta das colónias a patogénicos também será afectada. Daí também a preocupação com a diminuição da diversidade genética”, nota o biólogo.

“A diversidade genética influencia uma ampla gama de fenótipos nas colónias de abelhas, desde a expressão de compostos antimicrobianos até à resistência a agentes patogénicos, termorregulação, comportamento e defesa de colónias, essenciais para a sobrevivência das colónias e resposta ao stress ambiental”, lê-se no artigo publicado agora. Assim, adiantam ainda os investigadores, “tarefas dentro de uma colónia, como defesa e comportamento higiénico, são realizadas por um pequeno subconjunto de trabalhadores descendentes de apenas algumas linhas patrilineares”. E, ao que tudo indica, as diferenças na propensão a determinadas tarefas serão influenciadas pela genética. Quando a diversidade genética é reduzida, o número de trabalhadores que numa colónia executam algumas tarefas pode diminuir ou a tarefa pode ser executada por “trabalhadores menos especializados”, diminuindo a eficiência da colónia.

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Universidade de Coimbra

Mas é possível quantificar este declínio da diversidade genética? “Não é um declínio completamente drástico como vemos em algumas populações de mamíferos, onde não se encontra diversidade alguma. Concluímos que houve um declínio, não sabemos bem a causa, e ainda não sabemos quais as consequências que pode ter para a sobrevivência da espécie como um todo”, diz Gonçalo Themudo, adiantando que era necessário um estudo com uma amostra maior para tirar conclusões mais claras e mais robustas que permitissem quantificar a perda. O estudo realizado esteve apoiado na análise genética de 40 indivíduos históricos e 40 modernos e no conjunto de abelhas históricas sequenciadas encontravam-se exemplares de 17 países europeus.

Apesar de incindir nas abelhas europeias, os cientistas também fazem referência aos animais que existem noutras regiões do globo. “As abelhas que existem em África têm actualmente uma diversidade tão elevada como as abelhas históricas que tínhamos dos grupos europeus. E as abelhas do Médio Oriente tinham uma diversidade intermédia ou alta”, refere Gonçalo Themudo. O biólogo adianta que a diversidade genética em África pode estar a ser preservada porque a apicultura nestas zonas “não é tão intensiva e usa métodos mais tradicionais”. “As colmeias que existem aqui na Europa são colmeias onde há optimização do espaço, podem existir muito mais abelhas por colmeia, no último século houve uma diminuição do número de colmeias, mas houve um aumento do número de abelhas por colmeia”, diz.

O artigo começa por lembrar que as colónias selvagens e as colmeias geridas por apicultores têm sido “severamente afectadas” e “tiveram um declínio maciço em números”. “Os nossos resultados são consistentes com a existência de cinco linhagens evolutivas, conforme descrito anteriormente, e mostram uma diminuição na diversidade genética entre indivíduos históricos e existentes da mesma linhagem, bem como altos níveis de mistura em amostras históricas”, escrevem os autores, que confirmam “uma perda de diversidade genética durante o século passado” e alertam para um possível aumento da “vulnerabilidade das abelhas ao stress ecológico e antropogénico contemporâneo”.