O delírio da submissão

Uma dezena de contos fantásticos e de uma actualidade talvez inesperada.

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Evening Standard/Getty Images

O conto que dá título a esta colectânea de E. M. Forster, e que foi escrito e publicado há mais de cem anos, não é apenas uma alegoria distópica magistral, uma história de ficção-científica ou de “antecipação” de uma impressionante presciência (e que alguns constrangimentos recentes causados pela pandemia em curso tornaram pungente). É também um acabado exercício de melancólica ironia. Na terceira parte da narrativa, um “pensador” que faz uma conferência através de uma “plataforma” audiovisual que poderia chamar-se Zoom ou Google Meet, adverte o seu auditório: “Cuidado com as ideias em primeira mão! […] Deixem que as vossas ideias sejam em segunda mão e, se possível, em décima mão, porque, nesse caso, estarão bem afastadas desse elemento perturbador que é a observação directa. Não aprendam nada acerca deste meu assunto, a Revolução Francesa. Em vez disso, aprendam o que eu penso que Enicharmon pensava que Urizen pensava que Gutch pensava que Ho-Yung pensava que Chi-Bo-Sing pensava que Lafcadio Hearn pensava que Carlyle pensava que Mirabeau tinha dito acerca da Revolução Francesa.” (p. 45) Não era Barthes quem há mais de meio século notava também que os livros (e os filmes, etc.) se tinham tornado menos importantes do que os artigos e recensões de jornais a que davam origem, assim nos dispensando de os ler (e ver, etc.)? Não deixa de ser aqui legível a consciência elegíaca de que a experiência “directa” do mundo, acima referida, estaria cada vez menos ao alcance de sociedades tecnológica e culturalmente hipermediatizadas. Remata o conferencista de Forster: “E com o passar do tempo […] virá uma geração que terá ultrapassado os factos” — isto é, que os terá dispensado. Não estou certo de não vivermos já nesse tempo.

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O conto que dá título a esta colectânea de E. M. Forster, e que foi escrito e publicado há mais de cem anos, não é apenas uma alegoria distópica magistral, uma história de ficção-científica ou de “antecipação” de uma impressionante presciência (e que alguns constrangimentos recentes causados pela pandemia em curso tornaram pungente). É também um acabado exercício de melancólica ironia. Na terceira parte da narrativa, um “pensador” que faz uma conferência através de uma “plataforma” audiovisual que poderia chamar-se Zoom ou Google Meet, adverte o seu auditório: “Cuidado com as ideias em primeira mão! […] Deixem que as vossas ideias sejam em segunda mão e, se possível, em décima mão, porque, nesse caso, estarão bem afastadas desse elemento perturbador que é a observação directa. Não aprendam nada acerca deste meu assunto, a Revolução Francesa. Em vez disso, aprendam o que eu penso que Enicharmon pensava que Urizen pensava que Gutch pensava que Ho-Yung pensava que Chi-Bo-Sing pensava que Lafcadio Hearn pensava que Carlyle pensava que Mirabeau tinha dito acerca da Revolução Francesa.” (p. 45) Não era Barthes quem há mais de meio século notava também que os livros (e os filmes, etc.) se tinham tornado menos importantes do que os artigos e recensões de jornais a que davam origem, assim nos dispensando de os ler (e ver, etc.)? Não deixa de ser aqui legível a consciência elegíaca de que a experiência “directa” do mundo, acima referida, estaria cada vez menos ao alcance de sociedades tecnológica e culturalmente hipermediatizadas. Remata o conferencista de Forster: “E com o passar do tempo […] virá uma geração que terá ultrapassado os factos” — isto é, que os terá dispensado. Não estou certo de não vivermos já nesse tempo.