Da Foz à Baixa: a nova realidade das mercearias do Porto

Durante o estado de emergência, foram algumas as mercearias do Porto que lucraram com a pandemia. Agora, com a abertura de mais superfícies, o lento dissipar do medo e a falta de turismo, a nova realidade destes estabelecimentos é ainda incerta.

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Lojas vazias, à espera de clientes que ainda não retomaram hábitos Paulo Pimenta

Desde o levantamento do estado de emergência que o Porto se ergue dos escombros da covid-19. Parques, escolas, cafés e centros comerciais abrem, a medo, depois de um período de encerramento que deixou mazelas. Mas, durante estes dois meses e meio, houve estabelecimentos que continuaram a funcionar numa cidade praticamente “fechada”. Foi o caso das mercearias. Que enfrentam, contudo, desafios trazidos pelo novo “normal”. 

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Desde o levantamento do estado de emergência que o Porto se ergue dos escombros da covid-19. Parques, escolas, cafés e centros comerciais abrem, a medo, depois de um período de encerramento que deixou mazelas. Mas, durante estes dois meses e meio, houve estabelecimentos que continuaram a funcionar numa cidade praticamente “fechada”. Foi o caso das mercearias. Que enfrentam, contudo, desafios trazidos pelo novo “normal”. 

Às 11h30m deste arranque de Junho, estão quatro clientes na Mercearia do Molhe, um pequeno espaço na Foz do Douro, maioritariamente frequentado pelos residentes de muitos anos. Alguns vieram para comprar legumes e fruta fresca, outros não resistem aos éclairs. Usam máscaras coloridas e conversam animadamente com o responsável, António Borges, já habituado à polvorosa matinal.

A Mercearia do Molhe, especialista em marmeladas caseiras, queijos e vinhos, foi um dos estabelecimentos que lucrou com a pandemia – quem o diz é o próprio António, que ainda se lembra da preocupação das pessoas nas primeiras semanas. Temendo o eventual fecho das mercearias ou o esgotamento dos produtos, a confusão instalou-se – “os clientes levavam muito de uma só vez”. Para além disso, a pandemia incentivou as entregas ao domicílio que, apesar de se manterem, são cada vez menos. “Na altura da covid-19, havia menos gente ao balcão e mais entregas, agora está a equilibrar”.

Mais gente a comprar perto de casa

Ao chegar à rotunda da Boavista, que liga a Foz ao centro da cidade, a mercearia Casa de São Miguel confirma que, de facto, a covid-19 impulsionou o aumento de vendas. A população idosa, com medo de grandes deslocações, passou a recorrer mais ao comércio local. Atento a estes fenómenos, o director do mestrado em Planeamento Regional e Urbano da Universidade de Aveiro, José Carlos Mota, defende que “algumas dinâmicas do período do confinamento podem ajudar a impulsionar um novo olhar sobre o comércio”. As mercearias, nota, tornaram-se em “espaços de acolhimento e fornecimento para as pessoas que vivem na cidade”.

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É o caso de muitos novos clientes que se tornaram “habituais” quer na Mercearia do Molhe, quer na Casa de São Miguel. Mas o fenómeno urbano não se cinge ao Porto, nem a Portugal. ​Segundo um estudo realizado em Madrid pela Broadway Malyan, o pós-covid afigura-se como uma “oportunidade de relançar o retalho urbano”, “dando lugar a um novo modelo de negócio que permita a conversão dos promotores tradicionais em novos gestores comerciais”.

José Carlos Mota revela que, nesta altura, a Associação Comercial de Aveiro está a começar a reflectir sobre estas novas dinâmicas, num momento em que os parklets (extensões da calçada das ruas dedicadas ao lazer, ao comércio ou ao convívio público) começam a surgir como alternativas aos espaços ocupados pelo estacionamento automóvel. 

O sentido da vizinhança

​Porém, mesmo que a covid se tenha traduzido numa “redescoberta do sentido de vizinhança”, tal como apresentado por José Carlos Mota, a situação no Porto não é assim tão simples. Vera Resende, responsável pela Casa de São Miguel, rapidamente esclarece que, nos últimos dias, a afluência à sua mercearia tem diminuído – “as pessoas agora vão mais às grandes superfícies”, explicita. Para além disso, o negócio começa a ressentir-se por causa da “falta de turistas”, um cenário que António Borges também constata, mesmo que a sua mercearia atraia sobretudo os locais. 

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Mas onde o comércio sofre realmente é no coração da cidade. Na travessa do Carmo, não se vê praticamente vivalma, ainda. Josefina dos Anjos Fernandes, responsável pela frutaria Vitaminas, passa os tempos mortos à conversa com Maria Bárbara Pereira, do restaurante Papagaio, que “anda às moscas”. Ainda há pouco tempo, contam, fechou o restaurante A Tasquinha, que atraía muitos transeuntes.

“Não há moradores”, comentam as duas, que antes da covid-19 estavam habituadas ao rebuliço dos turistas e daqueles que passavam pelo Hospital de Santo António. Agora, já nem há vestígios dos estudantes que se encaminhavam para a Reitoria da Universidade do Porto, mesmo ao lado destes estabelecimentos.

Ruas sem habitantes, e sem clientes

Catarina Fonseca, responsável pela mercearia O Rei da Fruta, em frente ao Hospital de Santo António, subscreve esta visão: sem turistas, sem estudantes, sem as pessoas que paravam no Hospital, está cada vez mais difícil manter o negócio. “Eu trabalho muito com as pessoas do hospital. Isto não tem habitações. Isto aqui é tudo hostels”. Apesar disso, admite que no início de Março “ainda se trabalhou bem, porque as pessoas tinham medo que os estabelecimentos fechassem. A partir de Abril, começou a ser mais difícil, havia menos dinheiro”.

Em pleno centro, muito perto da Avenida dos Aliados, a frutaria Ludite viu o comércio diminuir consideravelmente com a pandemia – desde o levantamento do estado de emergência, “têm aparecido mais pessoas”, segundo Joana Alves, funcionária, mas continua a haver pouco movimento, dado o desaparecimento do turismo. Ana Firmino, uma cliente habitual que vive na Baixa do Porto, não se coíbe de culpar a gentrificação: “O Porto morreu”, atira, olhando para um espaço público quase vazio, povoado por trabalhadores apressados que tapam os rostos com máscaras.

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Ana, que “tem a sorte” de viver perto do Hard Club, sabe que não tem hipótese de ser desalojada, já que a sua senhoria “tem usufruto da casa até à morte” - até agora, tem sido espectadora das transformações de um Porto característico para uma cidade cada vez mais turistificada. Apesar disso, Ana acredita que a pandemia veio alterar o panorama preocupante de um Porto que perdia lentamente a sua identidade - “O Porto morreu, mas vai renascer das cinzas”, apressa-se a dizer... José Carlos Mota afirma que, para que esse renascimento traga resiliência, “é preciso repensar a solução turística de modo a recuperar-se a função residencial” das cidades. 

Joel Azevedo, presidente da Associação dos Comerciantes do Porto, explicita que a associação tem procurado “prestar apoio aos comerciantes”, de modo a “dinamizar da melhor forma possível” o sector, sublinhando ainda que os portugueses, após meses de confinamento em que recorriam ao comércio local, devem ser incentivados a comprar produtos portugueses, e localmente. Quanto aos impactos do turismo, Joel Azevedo aponta para a mesma solução preconizada pelo investigador da Universidade de Aveiro: uma gestão mais equilibrada das “duas receitas”, a dos visitantes e a dos locais.