O Ocidente face ao Coronavírus 2: arrogância e decadência

O contexto é apenas um: o de Estados que confinaram os cidadãos a larga escala – com excepção dos das “actividades essenciais para a economia”, que enviaram para o labor de mãos nuas, expondo-os a uma contaminação certa e a uma morte provável – por que se despojaram dos meios necessários para os proteger.

Enquanto os mortos da pandemia se contam aos milhares por dia nos países ocidentais e, nomeadamente, na Europa e nos Estados Unidos, comentadores e medias mainstream entretêm-nos dias afora com as mentiras da China que demorou tempo a revelar o novo vírus (o que é certamente verdade), favorecendo a sua propagação. Os mesmos entretêm-nos com o problema dos números falsos comunicados pela China e, cereja no topo do bolo, falam-nos, com ou sem reportagens a corroborá-lo, no autoritarismo do regime para combater a epidemia.

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Enquanto os mortos da pandemia se contam aos milhares por dia nos países ocidentais e, nomeadamente, na Europa e nos Estados Unidos, comentadores e medias mainstream entretêm-nos dias afora com as mentiras da China que demorou tempo a revelar o novo vírus (o que é certamente verdade), favorecendo a sua propagação. Os mesmos entretêm-nos com o problema dos números falsos comunicados pela China e, cereja no topo do bolo, falam-nos, com ou sem reportagens a corroborá-lo, no autoritarismo do regime para combater a epidemia.

Não sendo, de forma alguma, defensora do regime chinês – ​como, aliás, de qualquer regime autoritário –, não deixo, todavia, de interpretar esta avalanche de comentários e análises dos responsáveis das nossas democracias liberais como uma tentativa para esconder a sua própria incúria, não só face à antecipação de uma situação deste tipo, perfeitamente previsível – não fora o  SARS-CoV-1 na China em 2002-2004 [1], o MERS-CoV [2] na Península Arábica em 2012, e os alertas regulares dos epidemiologistas –, mas também à sua gestão, caótica, irresponsável e opaca.

Em vez de nos preocuparmos com o atraso do governo chinês em comunicar sobre a pandemia (há tempo para, em seu tempo, o fazer), deveríamos interrogar-nos sobre as razões pelas quais, tendo esta sido declarada em finais de Dezembro, na China, não nos antecipámos para lhe fazer frente, chegando ao cúmulo de sustentar – como a então ministra francesa da Saúde, Agnès Buzyn, em 23 de Janeiro – que o risco de propagação do vírus em França era quase nulo, já que as autoridades chinesas o estavam a conter em Wuhan...

Para além da falta de antecipação dos riscos de pandemia – em geral – e desta – uma vez declarada – em particular, haveria que olhar com modéstia para o que estava a ser feito na China – berço da pandemia – e nos países limítrofes – Coreia do Sul, Taiwan, Singapura... – para a conter, e a jugular. É que os chineses são, com os sauditas, os grandes especialistas mundiais de coronavírus, por um lado; por outro, tinham um relativo avanço em relação a nós, pelo que a China nos poderia ter servido, de alguma forma, de laboratório...

Mas uma tal postura era impossível de assumir. O Ocidente desenvolvido revelou-se – com a rara excepção, na Europa, da mercantilista e predadora Alemanha [3] – “sub-desenvolvido” para fazer face à crise sanitária, com um défice abissal do mínimo sindical em matéria de máscaras, luvas, batas, toucas, testes, respiradores e profissionais de saúde, resultado de décadas de destruição dos serviços públicos da saúde, da gestão de hospitais como empresas privadas e da globalização que, em nome da competitividade, delegou para países terceiros investigação e produção científica e fabrico de bens essenciais à soberania sanitária.

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EPA/ALEJANDRO GARCIA

Perante um vírus intrusivo, a quem se abriu de par em par as portas principais de entrada – como se de um hóspede de honra se tratasse –, com as mãos cheias de nada para proteger as populações, e fazendo assentar este vazio criminal numa vulgata científica adaptada às circunstâncias – o uso de máscara é desaconselhável na ausência de contaminação, a prática de testes a larga escala pode ser contraprodutiva... –, os governantes dos nossos países viram-se, em última instância, acossados ao confinamento dos cidadãos – em detrimento da actividade económica que sempre privilegiaram, contrariamente, afinal,  à produtivista China [4] –, expondo-se ao risco de uma potencial explosão de ocorrências no fim do período de isolamento.

Indispensável para conter o risco de revolta iminente das populações, o confinamento destas últimas – sem equivalente na história da Humanidade e sem nenhuma outra justificação que não seja a falta de meios para adoptar as boas práticas – vai constituir um poderoso instrumento nas mãos dos poderes políticos neoliberais, permitindo-lhes mudar a responsabilidade de campo, ou seja, transpô-la do plano colectivo (político), onde efectivamente se encontra, para o plano individual, segundo o princípio basilar do neoliberalismo. Cada cidadão é doravante responsável pelo que lhe vier a acontecer, com a agravante de que poderá também vir a ser responsável, com a sua atitude, pelo que vier a acontecer aos outros.

De culpado e criminoso, o Estado tornou-se zeloso e protector da população, não hesitando em fazer uso do seu arsenal preventivo-repressivo para chamar à ordem ou sancionar os cidadãos prevaricadores, desde os drones a sobrevoar os céus de Itália, Espanha ou França, para lembrar à população as instruções governamentais decorrentes dos estados de emergência entretanto adoptados, até à aplicação de coimas e penas de prisão a cidadãos “culpados de irem apanhar ar”. O Inimigo mudou de campo. Deixou de ser o Estado austeritário que cortou na saúde para dar às multinacionais e à finança, a sua impreparação e gestão criminosas, mas o Outro, o que sai à rua, vizinho, familiar ou desconhecido.

O processo de inversão da responsabilidade, do campo político para o individual, foi acompanhado pela estratégia do medo, que a própria adopção do estado de confinamento, se bem que parcial e tardia, contribuiu para forjar – como é que governos que sempre privilegiaram o Deus-mercado passaram a privilegiar os humanos? –, mas que foi cientemente ampliada e instrumentalizada, através, nomeadamente, das conhecidas encenações das conferências de imprensa a contar o número de mortos e de sobreviventes, de infectados e de suspeitos, de camas e de ventiladores, e a responsabilizar os comportamentos individuais de forma, não só infantilizante, como, sobretudo, descontextualizada.

Com efeito,  o contexto é apenas um: o de Estados que confinaram os cidadãos a larga escala – com excepção dos das “actividades essenciais para a economia”, que enviaram para o labor de mãos nuas, expondo-os a uma contaminação certa e a uma morte provável – por que se despojaram dos meios necessários para os proteger. É esta causalidade que a inversão do campo da responsabilidade quis romper, e é ela que não deve falhar na análise, quando os mesmos Estados vierem apresentar aos trabalhadores que confinaram compulsivamente, e aos outros, reformados, desempregados e demais precários, a factura do confinamento.

Resta saber se a estratégia do medo que acompanhou este último resultará. Mas o que se sabe, para já, é que milhões de pessoas, anestesiadas, se barricaram, sem revolta aparente, oferecendo ao espectro dos poderes políticos uma experiência em tamanho natural da predisposição à submissão voluntária. Ao romper as cadeias da causalidade, e reduzidos à vida nua (Agamben) [5] num cenário em que o medo do vírus parece ter mutado em vírus do medo, os livres cidadãos das nossas democracias liberais parecem mais predispostos do que nunca a aceitar a perpetuação dos estados de emergência e o confisco duradouro da Vida.

É que, como no-lo lembra Agamben, o que é preocupante não é tanto, ou, sobretudo, o presente, é o que virá a seguir. “Tal como as guerras que deixaram em herança à paz uma série de tecnologias nefastas, do arame farpado às centrais nucleares, também é provável que, após a urgência sanitária, os governos sejam tentados a levar a cabo experiências que ainda não tinham conseguido concretizar antes: fechar universidades e escolas, dispensar aulas através de plataformas, pôr um termo definitivo aos encontros e às discussões políticas ou culturais, limitar os intercâmbios a mensagens electrónicas e, sempre que puderem, substituírem por máquinas o contacto – o contágio – entre os seres humanos.” [6] Será necessário acrescentar: e proceder ao seu rastreio digital, que a Europa e os Estados Unidos estão a organizar, à imagem da autoritária China?

[1] Acrónimo inglês de Several Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 1 (Síndrome Respiratório Agudo Severo); o que designamos por coronavírus 2, no título, ou a OMS por covid-19, tem como nome científico SARS-CoV-2.

[2] Acrónimo em inglês de Middle East respiratory syndrome-related coronavirus, ou Síndrome Respiratório do Médio Oriente.

[3] Com efeito, se a Alemanha, que confinou mais tarde e desconfinou mais cedo,  fica, de muito longe, melhor na fotografia da gestão da crise sanitária, com menos de 8000 mortos (7861) em 13 de  de Maio, contra cerca de 31.000 na Itália (31.106), 27.000 em França (27.074) e em Espanha (27.321), é, em grande parte, porque goza da  vantagem  sanitária e industrial que lhe advém de mecanismos europeus concebidos para ela: os do mercado único e da moeda única, que vieram ancorar-se numa indústria previamente (e por razões históricas) mais desenvolvida e, por conseguinte, mais atractiva para os capitais produtivos, o que, juntamente com a mão-de-obra barata do seu Hinterland da Europa de Leste, se traduzem numa indústria poderosa e competitiva. Quanto à margem de manobra orçamental que permite à Alemanha gastar sem olhar para a despesa para fazer face à crise sanitária, se ela se deve igualmente ao sub-investimento crónico da Alemanha, tal sub-investimento não afectou o sector da saúde, devido – como no-lo explica o historiador Johann Chapoutot (entrevista a Médiapart, 24.04.2020)  à pressão de um eleitorado de direita composto de reformados detentores de pensões privadas (fundos de pensões) adepto do défice zero, mas não em detrimento da (sua) saúde. 

[4] Com efeito, se é verdade que a China tentou, no início, censurar a divulgação do vírus, também não é menos verdade que a partir de meados de Janeiro adoptou medidas drásticas de contenção da epidemia, que levaram à paralisia quase total da actividade económica.   

[5] Por “vida nua” entendemos, como o filósofo italiano Giorgio Agamben (Homo sacer, volume I, O poder soberano e a vida nua, 1997), a politização da vida natural, que é o fundamento do poder soberano e da sua manutenção, ou seja, a constituição de uma vida que não é apenas natural, mas considerada na sua relação com o poder e mantida através deste. Para Agamben, a vida nua é o ponto de ancoragem do poder, ou seja, o que torna possível o seu exercício. A soberania não se exerce sobre sujeitos de direito, mas sobre a vida nua, ou seja, sobre uma vida que se encontra exposta à violência do poder soberano, e que é o fundamento deste poder. A vida nua resulta de uma decisão soberana que a qualifica e lhe determina o valor.

[6] Chiarimenti (Esclarecimentos), Quodlibet, 17 de Março, traduzido para português a partir da tradução para francês de Martin Rueff, “Giorgio Agamben: 'Qu’est-ce donc une société qui ne reconnaît pas d’autre valeur que la survie?'”; in l’Obs, 27 de Abril de 2020.