Mobilidade Urbana em período de distanciamento social

Com a relaxação progressiva do confinamento, a par com a abertura da economia, há que procurar soluções baseadas noutros modos de transporte, que sejam acionáveis rapidamente e não tenham grandes exigências de capital.

É hoje claro que, mesmo com o anunciado relaxamento progressivo do nível de confinamento, vamos ter que viver os próximos meses em regime de distanciamento social. A relaxação progressiva do confinamento, a par com a abertura da economia, vai fazer aumentar o número de pessoas a servir pelos sistemas de transporte, mas o distanciamento social impõem limitações à capacidade dos transportes coletivos (TC): a capacidade máxima autorizada neste período para os TC será de 2/3 da legalmente definida, o que corresponde a uma distância entre pessoas de cerca de 75 centímetros (em vez dos 2 metros recomendados pela DGS no caso geral).

Para além dessa regra de limitação de capacidade, haverá também o medo do contágio, que levará algumas (muitas?) pessoas que disponham de alternativas a evitar usar os TC, pelo menos nas horas de ponta. Na maioria dos casos, a alternativa será o automóvel particular.

Estes factos dão origem a dois problemas cuja gravidade só vai ser óbvia daqui a algumas semanas, com boa parte da economia a funcionar:

  1. Como evitar o bloqueio do tráfego rodoviário por causa dessa transferência para o transporte individual;
  2. Como servir as pessoas que não têm alternativa mas que não conseguem ser servidas pelo TC face às limitações de capacidade?

A resposta a estes dois problemas é complexa, exigindo intervenções quer do lado da procura, quer do lado da oferta. Do lado da procura, a melhor forma de reduzir a sobrepressão nos sistemas de transporte é manter em teletrabalho uma boa parte dos trabalhadores, possivelmente com turnos semanais nas empresas. Ficou já demonstrado no mês e meio de confinamento que esta forma de trabalhar é viável e eficiente para muitas atividades no setor dos serviços. Mas isso não chega, a menos que com percentagens muito elevadas de teletrabalho, que aliás não é aplicável a um largo conjunto de atividades, nomeadamente no comércio e na indústria.

Por isso, é preciso também dispor de soluções do lado da oferta. O aumento forte da oferta de TC não é viável, pelos custos e prazos necessários. Há por isso que procurar soluções baseadas noutros modos de transporte, que sejam acionáveis rapidamente e não tenham grandes exigências de capital.

A melhor alternativa do ponto de vista do distanciamento social é o recurso à bicicleta, seja em posse individual ou partilhada. Acionar esta solução implica (à semelhança do que já está a ser feito em várias grandes cidades europeias) aumentar bastante a rede de pistas cicláveis, com marcações expeditas e maiores larguras, mas para já sem separação física dada a urgência – e com implantação dessas pistas não só no núcleo central das áreas metropolitanas mas também num conjunto bem selecionado de vias de acesso dos subúrbios. Com as bicicletas partilhadas há risco de contágio pelo guiador, que é fácil de evitar com um pequeno spray de desinfetante antes do primeiro contacto.

Para conseguir um impacto significativo seria necessário também aumentar rapidamente a frota de bicicletas elétricas partilhadas disponível na cidade de Lisboa e alargar o sistema pelo menos à primeira coroa da área metropolitana. Mas não é claro que exista a capacidade de fabrico dessas bicicletas ao ritmo que seria desejável. A orografia da cidade é muito limitativa do uso das bicicletas privadas – hoje na sua quase totalidade de tração humana – para as deslocações casa-trabalho, pelo que vale a pena alargar os incentivos já existentes à aquisição de bicicletas elétricas. O risco de furto dessas bicicletas (ou de componentes das mesmas) é uma limitação muito forte ao seu uso regular extra lazer, podendo haver alguma redução desse risco através da viabilização do seu estacionamento nos parques fechados, em zonas bem iluminadas e com vigilância CCTV, mas as bicicletas não podem atualmente aceder a esses parques.

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Desinfecção de carruagens do Metro de Lisboa: a partir de 4 de Maio, haverá mais portugueses a andar de transportes Miguel Manso

A única solução rapidamente escalável, sem exigência nem de capitais adicionais nem de mais agentes profissionais, é a do carpooling, ou seja, da utilização dos automóveis individuais com passageiro(s) que não são familiares do condutor. Ou seja, a adoção das boleias a níveis muito mais altos do que os atualmente praticados. Desde logo, e enquanto vigorar o distanciamento social, não deverá haver a bordo mais de um passageiro além do condutor, com uso de máscara por ambos. Todos sabemos que antes da crise havia muitos trabalhadores a deslocar-se para o trabalho sozinhos no seu carro, pelo que as oportunidades não faltam.

Mas há décadas que os sistemas de carpooling são apresentados como uma solução muito interessante para combater o congestionamento, sem que no entanto tenham vingado, no essencial porque a sua organização em pequenos grupos acaba por ser muito condicionante da flexibilidade que todos desejamos na organização da nossa agenda diária. Além disso, há vários anos que estão disponíveis apps de telemóvel para organização de boleias, mas também com adoção muito escassa para viagens regulares em áreas urbanas.

Devemos reconhecer que para a maioria das pessoas não é aliciante partilhar a intimidade do espaço interior dum veículo ligeiro com um desconhecido. Mas também há dez anos atrás todos diríamos que ninguém estaria disponível para partilhar aspetos da sua intimidade emocional com muitos (quase) desconhecidos e, entretanto, as redes sociais vieram desmentir essa perceção. Para obter uma adesão significativa, é preciso encontrar as propostas de valor (incluindo incentivos e outros fatores de motivação), seja para condutores seja para passageiros, que possam levar a que aceitem experimentar e, após essa experiência, passar a usar regularmente esse sistema. A tecnologia disponível a muito baixo custo, a capacidade de inovação de modelos de negócio e as vantagens sociais da adoção alargada do sistema justificam algum investimento intelectual e energia política na busca desses fatores de adesão.

Esta ampliação da escala das boleias ataca bem os dois problemas acima identificados, já que permitiria transportar as pessoas que não vão caber no TC e, ao mesmo tempo, reduzir o número de carros nas estradas, já que se baseia no aumento da ocupação dos veículos. E é também, pela escala muito maior a que pode ser rapidamente adotada por comparação com a das bicicletas, a que mais pode contribuir para minorar o agravamento da qualidade do ar que vamos sofrer com a reabertura da economia.

Devemos ainda aproveitar esta crise para aprender com ela e pensar em que medida algumas das medidas adotadas para lhe responder deveriam ser mantidas, porque nos permitiriam “subir de nível” na qualidade de vida urbana. Este conjunto de soluções – teletrabalho parcial em regime de turnos, reforço do papel das bicicletas e adoção sistemática de sistemas de carpooling – corresponde a esse perfil, devendo por isso o seu desenho fino e regulamentação ter em conta a desejável ativação permanente e não apenas transitória. Teríamos assim cumprido uma das regras base da resiliência dos sistemas: ultrapassar as crises duma forma que nos deixe mais bem preparados para o que vem a seguir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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