Covid-19: Teletrabalho veio para ficar, mas acarreta riscos, alertam especialistas

O equilíbrio entre as vantagens e as desvantagens é “difícil de conseguir” e, por isso, o teletrabalho tem de ser “negociado” entre as partes, defende Brandão Moniz.

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Muitas empresas estão vazias desde Março, com os colaboradores a trabalhar a partir de casa Miguel Manso

O recurso ao teletrabalho foi generalizado com a pandemia de covid-19 e os especialistas antecipam que venha a ser mais utilizado no futuro, mas, sem equilíbrio nem negociação, acarreta riscos para os trabalhadores.

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O recurso ao teletrabalho foi generalizado com a pandemia de covid-19 e os especialistas antecipam que venha a ser mais utilizado no futuro, mas, sem equilíbrio nem negociação, acarreta riscos para os trabalhadores.

O “risco de invasão do tempo da vida privada e familiar pelo trabalho” faz do teletrabalho um “fenómeno com dimensões perigosas para os trabalhadores”, acautela João Leal Amado, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

“Houve sempre muitas resistências” ao teletrabalho, “de todos, dos trabalhadores, das entidades empregadoras”, desde logo porque sempre se admitiu que, “na prática, podia não permitir uma melhor conciliação da vida profissional com a vida pessoal, mas acabar por misturar esses dois planos da vida das pessoas e praticamente tornar ilimitada a jornada de trabalho”, assinala.

“A pessoa deixa de ter referências temporais e passa a ter que praticamente estar disponível e a trabalhar a qualquer momento”, sinaliza o professor de Direito do Trabalho.

“O teletrabalho dá a sensação de que nunca se trabalhou tanto na vida”, resume o economista José Castro Caldas, considerando que “é muito mais pesado e muito menos eficiente” do que o trabalho face a face.

“Há pouca coisa que substitua o trabalho colectivo, no contexto das organizações, sejam elas quais forem, e é dessa interacção face a face, desse trabalho colectivo, que saem as ideias”, realça, assinalando que as relações interpessoais pela via digital “são uma fonte de dificuldades de entendimento e empatia com os outros”.

Reconhecendo que “há-de haver facetas do teletrabalho que são criativas e libertadoras, no sentido em que nos permitem gerir mais flexivelmente o nosso tempo”, Castro Caldas não duvida de que “há outras que são absolutamente empobrecedoras”.

Por isso, no futuro, o recurso ao teletrabalho vai ter de ser “muito selectivo”, acredita. Até porque há o risco de “exaustão”, alerta o investigador do CoLABOR, laboratório colaborativo para o trabalho, emprego e protecção social, onde coordena uma linha de investigação sobre trabalho e emprego.

“De algum modo, estamos a ver um bocadinho do filme do que seria o mundo sem contacto social no trabalho e acho que não chegamos a gostar do que estamos a ver”, observa o sociólogo Paulo Pedroso. “De repente, o facto de, à escala mundial, quase todos corrermos o risco de perder o emprego fez-nos lembrar quanto o emprego é importante para as nossas identidades sociais, não só pelo rendimento, mas pela interacção social”, nota.

“Se há uma coisa que resulta clara disto que aconteceu é a enorme importância que, na vida da grande maioria das pessoas, o trabalho tem”, corrobora João Leal Amado.

A adaptação da legislação à actual crise tem passado, em grande medida, pelas relações laborais, o que “é a melhor prova para contrariar o que muitos tinham afirmado, de que o trabalho já tinha quase morrido e tinha perdido a sua centralidade social”, assinala.

António Brandão Moniz, professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, afirma que o teletrabalho “tem todas as potencialidades para aumentar a seguir” à crise em curso, que desencadeou “algumas mudanças importantes”, que “têm a ver, em particular, com a possibilidade que agora é mais evidente de se realizar trabalho de forma sobretudo digital, à distância, não presente num local de trabalho determinado”.

Até aqui, o teletrabalho tinha uma aplicação isolada, era “malvisto pelas entidades empresariais, muitas vezes renitentes, porque pensam que deixam de ter controlo sobre o próprio trabalhador e sobre a execução do trabalho”, assinala, dando como exemplo a resistência das operadoras de call centers em adoptá-lo, já em tempo de pandemia.

O teletrabalho — não sempre, mas em certos casos — “deveria ser mais aplicado, sobretudo para que possa apoiar situações de trabalhadores que, por alguma razão, têm de ficar em casa para apoio à família ou por algum problema próprio”, sustenta.

“Quem desejava executar formas de teletrabalho ocasionalmente, por diferentes razões, agora percebe que isso é mais fácil”, frisa. Simultaneamente, as empresas também tiveram de organizar essa modalidade e poderão “avaliar quais são os resultados da sua aplicação”.

Isto não quer dizer que “o teletrabalho em si é apenas bom, pode ser bom em algumas circunstâncias, mas pode trazer também outros riscos, que, muitas vezes, nem são sequer perceptíveis para quem está a trabalhar”, admite Brandão Moniz. O equilíbrio entre as vantagens e as desvantagens é “difícil de conseguir” e, por isso, o teletrabalho tem de ser “negociado” entre as partes, frisa.

“Admito que isto já não volte atrás, no sentido de voltarmos à situação anterior. Apesar de tudo, provou-se que há um conjunto muito largo de actividades que podem ser desempenhadas pelos trabalhadores à distância, a partir de casa e não tendo que se deslocar para a empresa”, conclui Leal Amado.