Memória para que a crise total não seja totalitária…

Se a impostação de que a pandemia veio acelerar algumas das tendências globais do século for acertada, as democracias vão ter mesmo de se cuidar.

1. A pandemia de covid-19 é, tal como o nome indica, uma crise global. Mas ela não é só uma crise global, é também uma crise total. Ela atinge todos os cantos do mundo, mas invade também todas as dimensões da vida em comum. Aqui e ali, ela não é apenas total, ela parece quase totalitária.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

1. A pandemia de covid-19 é, tal como o nome indica, uma crise global. Mas ela não é só uma crise global, é também uma crise total. Ela atinge todos os cantos do mundo, mas invade também todas as dimensões da vida em comum. Aqui e ali, ela não é apenas total, ela parece quase totalitária.

Não sabemos quanto tempo vai durar, como vai evoluir, como irá repercutir-se. Pode quedar-se pelo que hoje conseguimos antever, pode ser ainda mais grave, mais intensa, mais espessa. No entanto, é fácil de intuir que sobrevirá um tempo em que os historiadores falarão da “grande pandemia”, no mínimo, como hoje falamos da “grande depressão” e, por certo, mais enfaticamente do que falamos da ressuscitada “gripe espanhola”. A enorme crise económica, financeira e social dos anos 10 talvez seja vista como um mero antecedente, quiçá um prenúncio, da “grande pandemia”. Em poucas palavras, haverá um antes e um depois da covid-19.

2. A “grande pandemia” começa por ser uma crise de saúde pública que veio para ficar, deixar rasto e lastro, até que haja vacina ou tratamento. Porque a única via de combate disponível era um rigoroso confinamento, ela tornou-se uma enormíssima crise económica, ainda em plena expansão. Até agora temos dado atenção, quase em exclusivo, a estas duas dimensões: a dimensão sanitária e a dimensão económico-social. Sem dúvida que, seja no imediato, seja a médio prazo, estas são as duas vertentes que mais directamente afectam as pessoas, as famílias, as empresas e as comunidades em que vivemos. Mas parece evidente que esta crise vai mais longe e vai mais fundo e atinge mesmo o nosso modo de vida. Ela terá decerto mais do que uma “entrada” num dicionário de história das mentalidades. Mesmo sem entrar em considerações do tipo antropológico, filosófico ou sociológico – como fiz aqui há quinze dias –, parecem já claros alguns dos incontáveis efeitos sistémicos destes tempos inauditos.

3. Ao mostrar que estávamos desguarnecidos de reservas estratégicas em matéria de medicamentos, equipamentos e eventualmente alimentos, a crise projectou-se no plano da segurança ou até, usando a palavra sem acuidade, no plano da soberania (até daquilo a que Macron tem chamado ambiguamente “soberania europeia”). A auto-suficiência em bens de primeira necessidade é um requisito irredutível de segurança, de defesa, de protecção civil e militar. A vulnerabilidade, manifestada neste quadro, da União Europeia, dos Estados europeus ou dos Estados Unidos é deveras surpreendente. A defesa europeia não é apenas uma questão de orçamento ou de indústria militar (não por acaso, digo de há muito que devíamos começar pela protecção civil). As decisões políticas serão doravante julgadas pela capacidade de previdência, de previsão e de precaução. Voltarão, talvez sob a forma de silos, os “abrigos” da guerra fria.

4. Ao exigir e impor juridicamente o decretamento múltiplo de “estados de excepção” e similares, a crise exponenciou a sua declinação política e constitucional. Antes da pandemia, as democracias já estavam sob tensão e erosão, assediadas pelos populismos, nacionalismos e “nacional-populismos”. Os “estados de necessidade”, porém, deram o pretexto para abusos e avanços autoritários de vária sorte. Os receios e os medos abriram a porta a toda a desinformação e notícias falsas, potenciadas pelas dificuldades económicas que assolaram os meios de comunicação e pela propaganda oportunista dos regimes ditatoriais. Mesmo nos Estados que escrupulosamente se mantêm nas baias da proporcionalidade, todos ponderam agora formas mais “plásticas” de intrusão no uso de dados pessoais e íntimos (da febre à geo-localização) para conter e prevenir os contágios. A comoção popular deixa enorme espaço para a contemporização e a condescendência. Eis como um transe sanitário pode desaguar numa “crise” dos direitos fundamentais. A limitação do poder, o pluralismo da informação e da opinião e os direitos mais elementares são os três pilares das democracias liberais. Se a impostação de que a pandemia veio acelerar algumas das tendências globais do século for acertada, as democracias vão ter mesmo de se cuidar.

5. O fecho quase universal e sincrónico de fronteiras, numa espécie de confinamento estatal, e a travagem brusca e radical da mobilidade e das trocas internacionais, vieram questionar a viabilidade e a continuidade da globalização. A redução dos Estados à sua essência territorial parece evocar os cenários mais drásticos de uma economia e de uma ecologia de subsistência. Alguns regimes, já esquecidos ou sempre saudosos das fronteiras, começam a retomar-lhe o gosto. Mas talvez sejam ânsias precipitadas. A impossibilidade de viajar não acalmou, muito antes pelo contrário, o tráfego incessante e vertiginoso de “bits” e de “bots”. Enquanto se paralisou a mobilidade real, a mobilidade virtual parece drenada num acelerador de partículas. A tecnologia não só atenuou e ultrapassou largamente muitas das barreiras físicas como “testou”, “certificou” e tornou irreversíveis novos modelos de trabalho e de ensino. As notícias da morte da globalização parecem, pois, demasiado precoces. O que não significa que o encerramento das fronteiras, o fecho dos aeroportos, o estabelecimento de controlos apertados não vá deixar úlceras e cicatrizes. A reabertura das fronteiras estatais, dentro e fora da UE, será uma das mais complexas e delicadas operações políticas, seja por ar, por terra ou por mar. Trará medos, traumas e fantasmas.

6. Nem todos se terão apercebido, mas se a globalização é, como um dia aqui me atrevi a escrever, o processo de dissolução progressiva da dimensão humana e física do espaço na dimensão humana e espiritual do tempo; então, ainda que por ora, o espaço passou a perna ao tempo. Não sabemos por quanto tempo, nem em que exacto espaço.

NÃO e NÃO

NÃO Conselho Europeu. Do Conselho para o Eurogrupo, deste para o Conselho, deste para a Comissão, a seguir para o Eurogrupo e de novo para o Conselho. Semanas e meses de espera e de desespero.

NÃO Josep Borrel. O Alto Representante para a Política Externa terá sofrido e cedido a pressões da China para omitir críticas no relatório que versa a desinformação sobre a pandemia. O esclarecimento é urgente.