Covid-19: Hélia vive num lar para deficientes. “Ansiosa para que tudo isto acabe. E rezando para que o vírus não entre”

Perto de 300 lares acolhem mais de seis mil pessoas com deficiência, quase todas adultas, a maior parte com défice cognitivo, o que exige cuidado redobrado. “Manter uma destas pessoas em isolamento num quarto é de uma violência indescritível”, realça a presidente da Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental.

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Reuters/CHRISTINNE MUSCHI

Hélia Maia tem “muitas saudades de dar e receber beijinhos e abraços”. Já lá vai um mês sem idas ao Centro de Actividades Ocupacionais e visitas da avó e da antiga família de acolhimento. O seu mundo, agora, resume-se ao Lar Residencial de São Silvestre, da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Coimbra. Como está? “Ansiosa para que tudo isto acabe. E rezando para que o vírus não entre no lar.”

Um sentimento partilhado, aquele. “Para mim, também é uma ansiedade enorme imaginar que o vírus poderá entrar numa das nossas estruturas”, confessa Helena Albuquerque, presidente da APPACDM de Coimbra. Já há pessoas infectadas em lares residenciais de associadas da Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, a que também preside. “Essas situações foram bem tratadas. Não conheço casos de disseminação de vírus”, garante.

O primeiro veio a público este sábado num lar das misericórdias: o vírus entrou no Centro de Apoio e Reabilitação de Pessoas com Deficiência de Touguinha, em Vila do Conde, e infectou 83 dos 94 residentes que ali estavam. Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas (MP), admite “casos pontuais” noutros lares. E Lino Maia, presidente da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS), “pequenos focos”. Não julga que os lares residenciais se devem recusar a acolher quem está contaminado – “nem é isso que tem sido feito” –, julga que “o sector da saúde deve pensar numa alternativa”, afastando o perigo de contágio.

Todo o cuidado é pouco, como diz Rogério Cação, vice-presidente da Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social. Estes lares acolhem pessoas sem pais ou com pais demasiado velhos ou doentes para cuidar delas, quase todas adultas, a maior parte com défice cognitivo, algumas com doenças associadas, por vezes de foro respiratório ou cardíaco. “São as pessoas mais carenciadas”, corrobora Lino Maia. Ou “mais frágeis”, no dizer de Manuel Lemos.

A Helena Albuquerque basta pensar no filho, com trissomia 21, que mora com ela. Seria “impossível fazê-lo compreender a necessidade de isolamento”. “São pessoas muito afectuosas.” Nos lares, tudo se complica. “O risco de contágio é muito maior. Manter uma destas pessoas em isolamento num quarto é de uma violência indescritível. Não percebe porque está sozinha, porque não a abraçam, porque não a beijam.” 

Não é um pequeno universo este que integra Hélia. A última Carta Social, referente a 2018, aponta para perto de 300 lares a acolher mais de seis mil pessoas com deficiência. Bem menos de metade capaz de tomar banho e vestir-se sem ajuda alheia e à volta de dois terços a dispensar o uso de fralda.

A coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos, Paula Campos Pinto, teme que a qualquer hora lhe chegue notícia de fraldas que só se mudam uma vez por dia. Os lares residenciais para pessoas com deficiência “têm problemas idênticos aos dos idosos”. “Não há excedentes. Os acordos [de financiamento com a Segurança Social] são feitos com base no rácio de pessoas por trabalhador. Todo o pessoal contratado é necessário. Como é possível funcionar com metade? Fazê-lo significa necessariamente um menor nível de cuidados.”

Outras valências

Muitas instituições combinam os lares residenciais com outras valências, como centros de actividades ocupacionais, lembra Helena Albuquerque. Delineados os planos de contingência, recorreram a funcionários de serviços suspensos ou reduzidos. Muitas também trataram logo de ultrapassar a falta de equipamento de protecção individual. “Aconselhámos as nossas associadas a não esperarem, a fazerem elas próprias o material de protecção.” Não podem inventar espaço, nem sujeitar toda a gente a testes de despiste de covid-19, como tantas gostariam de fazer.

Albuquerque confia que lá chegarão: “Vai haver testes para nós. Os idosos estão na primeira linha, mas nós temos estado na segunda linha. Numas zonas temos recebido testes, noutras não porque ninguém recebe. Só temos testes quando há sintomas.” Rogério Cação está em guarda: “O Ministério do Trabalho garantiu que os lares residenciais estavam enquadrados nas prioridades, mas às vezes o enquadramento teórico é um e a prática é outra.”

Apesar da colectiva sensação de achaque, pouquíssimas famílias optaram por ir buscar as suas pessoas aos lares para com elas passar a pandemia. Para lá de todo o esforço de distanciamento e higiene, nos lares, como nas famílias, exige-se criatividade. “O afastamento de rotinas retira sentimento de confiança”, observa Cação. “Para além das medidas de protecção, temos de desenvolver estratégias de animação e dinamização de auto-estima.”

Hélia não tinha quem a fosse buscar. Conta 30 anos e quase dez de internamento. Está bem, ao que se pode entender do seu depoimento escrito. “Só um pouco aborrecida por não poder fazer a minha vida normal.” Reconhece o esforço dos funcionários para a entreter e entreter os outros 17 residentes no Lar de São Silvestre. “Temos feito actividades diferentes e algumas delas estão a ser orientadas através do computador.” Mas mal pode esperar que tudo esteja controlado e possa abraçar e beijar quem gosta.

A saudade parece ser um mal generalizado. Ao que conta Helena Albuquerque, já valeu um valente susto à APPACDM de Coimbra. “A mãe de um jovem ia lá vê-lo todos os dias e deixou de aparecer. Ele não percebeu aquela ausência e fez febre. A mãe foi lá. Falou com ele a partir da varanda. A febre desapareceu.”.

Quem for a outro lar residencial daquela organização, Montes Claros, ouvirá Maria José Ramalhete a fazer a mesma queixa. Tem 55 anos e saudades dos irmãos, dos cunhados, dos sobrinhos. “É um bocado chata a pandemia, nunca mais passa, mas estou a gostar de estar na quarentena.” Não está parada, de acordo com o depoimento escrito. “Tenho feito actividades com o Conrado [animador], com a Dra. Carla [coordenadora do lar] e com as senhoras [auxiliares de acção directa]. Tenho lavado os tachos, feito renda, dançado, cantado. [Tenho feito] ginástica e sessões de relaxamento.” Nunca antes fizera renda. Quando tudo isto acabar, vai “fazer uma festa e ir para a rua”. Quem a poderá censurar?