Ficar em casa é o segundo trabalho

O cumprimento escrupuloso, aborrecido, previsível e cansativo das regras de quarentena é a hercúlea tarefa que vos é pedida, o vosso segundo trabalho.

Foto
Reuters/Rafael Marchante

Habitualmente, a ficção é um lugar seguro, encostada do lado de lá do ecrã ou dentro das páginas de um livro. Basta carregar em pause ou fechar o livro, e estamos de volta ao nosso mundinho. O tempo em época de covid-19 parece decorrer a um ritmo próprio. Tudo muda incrivelmente rápido e, ao mesmo tempo, as semanas parecem-se mais com eras do que com dias. Um ritmo quase irreal, uma forma quase mitológica de contar a história.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Habitualmente, a ficção é um lugar seguro, encostada do lado de lá do ecrã ou dentro das páginas de um livro. Basta carregar em pause ou fechar o livro, e estamos de volta ao nosso mundinho. O tempo em época de covid-19 parece decorrer a um ritmo próprio. Tudo muda incrivelmente rápido e, ao mesmo tempo, as semanas parecem-se mais com eras do que com dias. Um ritmo quase irreal, uma forma quase mitológica de contar a história.

Hoje, vivemos uma realidade de tal forma distópica que não é difícil vermo-nos dentro do livro, no lado inseguro das páginas. As nossas acções contam mais do que nunca, as nossas decisões determinam o final do capítulo, o cansaço adensa-se e não há botão de pause. Numa analogia mitológica, parecemos estar diante do segundo dos 12 trabalhos de Hércules a tentar vencer uma Hidra de múltiplas cabeças, em que, por cada uma cortada, duas nascem em seu lugar.

Entramos numa semana francamente importante na nossa história nacional da doença e, mais do que nunca até aqui, temos de ter a consciência colectiva de que não podemos quebrar o isolamento. Aqui e ali notam-se, nestes dias, pequenas fugas à quarentena. São os efeitos naturais do sucesso. É a falsa sensação de segurança imposta pelos números animadores que nos chegam. É também por isso que as medidas tomadas pelo Governo relativamente ao fim-de-semana pascal são tão importantes. É essencial aceitá-las e promovê-las, insistir junto dos familiares mais novos e mais velhos a necessidade de contenção, de resiliência e de calma.

Actualmente, somos um dos países que mais testes tem realizado por milhão de habitantes, depois de uma fase inicial em que tivemos grande dificuldade de conseguir colocar esse sistema em andamento. Ainda não conseguimos o ideal, que seria testar todos os doentes que entram pela porta do hospital, o que permitiria controlar o ambiente de trabalho e risco de contágio. Mas é um objectivo que deverá ser perseguido, tal como testar regularmente os profissionais de saúde, potenciando um local de trabalho seguro.

Na comunidade, os sintomas leves continuam, em muitos casos, a não ser testados. E não há nada errado nisso: os casos de doença leve não gastam recursos. Basta assumirem que são casos positivos e comportarem-se exemplarmente como tal, e o sistema nem notará que existem. Os testes devem ficar reservados para aqueles com sintomas leves que trabalhem fora de casa, os que têm a obrigação de proteger o próximo e onde um resultado positivo obriga à quarentena domiciliária.

Importa lembrar que uma curva em crescimento lento é, ainda assim, uma curva em crescimento. Nos hospitais e centros de saúde, o fluxo diário de doentes continua a aumentar e os recursos continuam a ser finitos, sejam humanos, sejam físicos. Os planos de contingência aplicados aparentam solidez, mas nada os testará como a realidade. A alocação de pessoal a doentes covid-19 está a ser feita em simultâneo a outras áreas que merecem igual atenção e, como tal, o esforço diário é redobrado por todos os envolvidos. O pessoal de saúde continua a trabalhar num ambiente extremamente exigente e solitário, longe das suas famílias, com receio de contaminar aqueles que lhes são mais próximos. Semanas longe dos filhos pequenos, das mulheres e maridos, dos pais mais fragilizados. Um esforço que tem de ser respeitado. Se precisarem de cuidados de saúde, venham resguardados, digam logo de início que podem estar doentes, que têm contactos doentes ou suspeitos, protejam quem vos quer proteger. É uma ferramenta básica de humanismo que não pode falhar.

E se não tiverem de sair, não saiam. As idas à rua devem ser resguardadas e as interacções, limitadas. A máscara cirúrgica simples é uma ferramenta de defesa pessoal e respeito comunitário e, estou certo, em breve haverá milhões delas a ser distribuídas. O número de empresas nacionais envolvido na sua produção tem sido público e o produto revisto por entidades certificadas. O vírus não está em suspensão no ar de uma rua deserta, mas está muito mais próximo num corredor apertado de supermercado, numa unidade fabril, dentro de uma carruagem de metro ou na paragem de autocarro, locais onde a máscara faz a diferença.

Todas as pequenas medidas contam para o quadro final, o seu somatório tornando-se visível a cada dia que a curva é arrastada para baixo. Nada é desaproveitado, mas um pequeno deslize pode ter graves consequências. O horizonte deste modo de vida não se vai alterar substancialmente nas próximas semanas... O cumprimento escrupuloso, aborrecido, previsível e cansativo das regras de quarentena é a hercúlea tarefa que vos é pedida, o vosso segundo trabalho, um de tantos outros que virão brevemente abalar-nos e testar-nos. Neste presente distópico, nesta era de heróis improváveis, sejam a mão que guia a espada em vez de serem mais uma cabeça a multiplicar-se.