Os humanos modernos já cozinhavam vegetais há 170 mil anos

Ao todo, numa gruta da África do Sul, descobriram-se 55 rizomas carbonizados inteiros e 30 fragmentados.

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Rizomas carbonizados com 170 mil anos Lyn Wadley

No território da actual África do Sul, há 170 mil anos, os humanos anatomicamente modernos cozinhavam vegetais nas fogueiras. Esta é a conclusão de uma equipa internacional de cientistas anunciada num artigo esta sexta-feira na revista científica Science e surge a partir da descoberta de pequenos rizomas carbonizados – caules subterrâneos mais ou menos paralelos à superfície do solo – na gruta de Border, na África do Sul. Esta é assim a prova directa mais antiga de vegetais cozinhados pelos humanos modernos.

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No território da actual África do Sul, há 170 mil anos, os humanos anatomicamente modernos cozinhavam vegetais nas fogueiras. Esta é a conclusão de uma equipa internacional de cientistas anunciada num artigo esta sexta-feira na revista científica Science e surge a partir da descoberta de pequenos rizomas carbonizados – caules subterrâneos mais ou menos paralelos à superfície do solo – na gruta de Border, na África do Sul. Esta é assim a prova directa mais antiga de vegetais cozinhados pelos humanos modernos.

“Estava a escavar nas antigas fogueiras da gruta de Border [nos montes Libombos, na fronteira entre a África do Sul e a Suazilândia] quando encontrei os rizomas, que até pareciam pequenos pedaços de carvão”, relembra ao PÚBLICO Lyn Wadley, cientista da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e uma das autoras do trabalho. “Ao todo, encontrei 55 rizomas inteiros e 30 fragmentos.”

Percebeu-se que eram rizomas devido ao seu tamanho, forma e estrutura vascular analisada num microscópio electrónico de varrimento. Também se concluiu que esses rizomas carbonizados pertencem ao género Hypoxis. Provavelmente, a espécie deste género que mais cresce hoje na província de KwaZulu-Natal (onde se situa a gruta de Border) é a Hypoxis angustifolia.

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Habitat onde cresce a Hypoxis angustifolia Lyn Wadley

Estes rizomas eram extraídos do subsolo – talvez da encosta próxima da gruta – pelo Homo sapiens (a nossa espécie) com paus de madeira. Depois, levavam esses caules para dentro da gruta. “Cozinhavam-nos nas cinzas das fogueiras. Provavelmente, esta é a razão porque se perdiam alguns deles: ficavam queimados”, descreve Lyn Wadley. Ao contrário da caça e do consumo de carne, é mais difícil estudar a alimentação de vegetais dos primeiros humanos modernos com maior detalhe porque se degradam mais facilmente.

Uma das vantagens dos rizomas é que eram fáceis de transportar. “[Os humanos modernos] levavam os rizomas até à gruta, onde podiam partilhá-los com outros membros do grupo, provavelmente os mais velhos e as crianças que não conseguiam apanhá-los”, esclarece Lyn Wadley.

A importância dos alimentos cozinhados

De acordo com um comunicado sobre o trabalho, os rizomas do género Hypoxis são nutritivos, ricos em hidratos de carbono e fibrosos. “Cozinhar rizomas ricos em fibras fez com que fosse mais fácil descascá-los e digeri-los. Desta forma, podiam ser consumidos mais rizomas e os benefícios nutricionais deveriam ter sido grandes”, assinala Lyn Wadley. A cientista adiantou ainda ao jornal espanhol El Mundo que os hidratos de carbono “são importantes para o cérebro e as pessoas necessitam de consumir uns 100 gramas num dia para que tenham um bom funcionamento cerebral”.

No artigo do El Mundo, também se lembra que a cozedura de alimentos (processo que inclui aquecer ou moer comida) reduziu muito o trabalho necessário para a digestão e permitiu extrair mais energia dos alimentos. Por exemplo, como se conseguia amolecer as paredes celulares das plantas, esse procedimento libertava amido (um hidrato de carbono) e gordura. Pensava-se que estes nutrientes a mais contribuíram para o aumento do cérebro dos humanos.

Até agora, já se tinham encontrado pequenos fragmentos de raízes queimadas e de bolbos com 120 mil anos nas grutas do rio Klasies, também na África do Sul. “Contudo, estavam tão fragmentados que não conseguimos estudá-los e saber se eram comestíveis”, refere Lyn Wadley. Já no Norte do país, no sítio arqueológico Bushman Rock Shelter foram descobertos rizomas cozinhados com, provavelmente, 12 mil anos.

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Gruta de Border Lucinda Backwell

“Outros hominíneos já deviam cozinhar vegetais antes do Homo sapiens, mas não temos nenhuma prova disto”, indica a cientista, acrescentando que os primatas não humanos comiam tubérculos crus e que os hominíneos também o deveriam fazer. No artigo científico, salienta-se ainda que foram encontradas sementes torradas com 780 mil anos – portanto, muito antes do aparecimento do Homo sapiens – no sítio arqueológico de Gesher Benot Ya’aqov, em Israel. “O importante a reter sobre a cozedura dos alimentos é que os tornou mais digeríveis. Como esse processo libertava glicose e destruía fibras, os humanos modernos puderam beneficiar mais dos nutrientes da comida cozinhada”, resume Lyn Wadley.

Além dos rizomas, já foram feitas muitas descobertas na gruta de Border. Desde que o antropólogo Raymond Dart a escavou pela primeira vez em 1934, foram encontrados lá ferramentas de pedra, um instrumento de contagem, resina, contas de colar de casca de ovo de avestruz ou a sepultura de um bebé com 74 mil anos.