Uma expedição ilegal às ruínas do programa espacial da URSS

Num lugar remoto do Cazaquistão jazem as ruínas vigiadas de uma base aeroespacial da ex-União Soviética. O fotógrafo Jonathan “Jonk” Jimenez, especializado em fotografia de lugares abandonados, arriscou pena de prisão para captar imagens de uma realidade que o governo russo prefere esconder.

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O francês Jonathan “Jonk” Jimenez, que já documentou mais de 1500 locais abandonados em 50 países, embarcou, recentemente, na mais ambiciosa jornada do seu extenso portefólio fotográfico: a visita às ruínas do programa espacial soviético, no cosmódromo Baikonur, no Cazaquistão. “Esta foi a expedição mais incrível da minha carreira”, contou ao P3, por email. Por dois motivos. “Primeiro, porque o local é único, é incrível; segundo, pela aventura que foi visitá-lo.” Durante 48 horas, fintou as patrulhas militares russas que guardam religiosamente o local, correndo risco de acusação e prisão. E o resultado das suas impressionantes imagens não podia contrastar mais radicalmente com a decadência do lugar que registou: nas fotografias são visíveis foguetões abandonados, vandalizados, pilhados de metais valiosos, documentação historicamente relevante esquecida em escritórios congelados no tempo, edifícios há décadas despojados de condições de habitabilidade e funcionamento.

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©Jonathan "Jonk" Jimenez

“Antes de entrar em detalhes acerca da expedição que deu origem a esta reportagem, é importante contextualizar, historicamente, o programa espacial soviético”, introduz. O cosmódromo Baikonur, que foi visitado por “Jonk” em Abril de 2018, foi criado pelo governo da URSS ainda durante a década de 50 do século XX. Foi a partir desse local que o primeiro vaivém soviético, Buran, foi, com sucesso, lançado para o espaço, em 1988 – ainda durante o período da Guerra Fria. O programa que levou Buran para órbita foi desmantelado em 1993, durante a presidência de Boris Ieltsin, altura em que o cosmódromo foi relegado ao abandono com todos os seus equipamentos no interior. E, desde então, o acesso a estas ruínas foi restringido. Qualquer intrusão nesta área por pessoal não autorizado é encarada pelo governo russo como um crime punível com prisão. O francês não se deixou dissuadir e assim nasceu o fotolivro Baïkonour  Vestiges du Programme Spatial Soviétique, publicado em Novembro último.

Para chegar ao cosmódromo, “Jonk” voou de Paris para Budapeste e de lá até Kazan. Na aldeia mais próxima da estação espacial russa, em Toretam, encontrou mais três fotógrafos – dois polacos e um norte-americano – que o acompanharam durante a aventura fotográfica. Foi na sua companhia que realizou, na pequena aldeia, os últimos preparativos para a expedição ilegal. Comprar mantimentos e garantir transporte para o local foram medidas essenciais para o sucesso da empreitada. A cooperação de um taxista cazaque, que deveria comprometer-se em levar os quatro até ao interior da área militarizada, foi conseguida a troco do equivalente a vários salários locais, por se tratar de uma operação ilegal e sigilosa. “Encontrámos um condutor corajoso que se alegrou com a perspectiva de fazer algum dinheiro extra”, explicou. A notícia de um lançamento oficial em Baikonur, coincidente com as datas da expedição, alertou a comitiva. “Ficámos a saber que a segurança do cosmódromo se tornava mais apertada neste tipo de situação”, comentou. “Mas não podíamos recuar agora.”

Em data não especificada, o fotógrafo e a sua comitiva saltaram do táxi já dentro da zona militarizada, a 20 quilómetros do destino, em horário nocturno. Com duas dezenas de quilos às costas em material e mantimentos, e munidos de uma lanterna de cabeça, “Jonk” e cada um dos companheiros percorreram, a pé, a distância que os separava da base 112a. Tudo em seu redor parecia deserto. Ao longe, um vislumbre de pequenas estruturas e pontos de luz. Inesperadamente, a meio do percurso, os fotógrafos sentiram actividade das patrulhas; ansiosos, decidiram apagar as lanternas. “Estou habituado a entrar em locais proibidos, mas nunca arrisquei este tipo de consequências no caso de ser capturado”, confessou.

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Vista do interior da base 112a, no cosmódromo Baikonur ©Jonathan "Jonk" Jimenez

A chegada à base 112a deu-se pela 01h30. “Entrámos com facilidade através de uma janela.” Uma vez lá dentro, uma sensação de alívio percorreu-os a todos. “A parte mais difícil tinha passado.” Ser apanhado na viagem de regresso seria menos gravoso, na opinião de “Jonk”, por já ter sido cumprida a missão de fotografar. Mas o alívio que sentiram durou pouco tempo. “Mais tarde, descobrimos que também era possível sermos apanhados lá dentro.”

“Jonk”, Mr. Blue, Mr. Red e Mr. Green – como apelidou o francês os colegas de viagem – pernoitaram numa sala de 10 metros quadrados, no quinto ou sexto piso do edifício da base, junto a dois vaivéns espaciais: um protótipo, chamado Orbiter OK-4M, que nunca foi construído com intenção de voar, e um vaivém real, o Orbiter K2-Ptichka, cuja construção foi congelada nos 80% de progresso. Num edifício adjacente, a 500 metros da base, fotografou também a plataforma de lançamento Energia, que é visível nas imagens. “Já devem ter visto em filme, quando a plataforma de lançamento se solta do foguetão. É a essa estrutura que me refiro.”

Durante a estadia em Baikonur, o fotógrafo explorou detalhadamente cada local de interesse em seu redor. “Passei muito tempo em salas pequenas, nos primeiros andares do edifício, onde encontrei muita documentação relativa a propaganda, com logótipos soviéticos. Também me cruzei com documentos relativos a partes de vaivéns norte-americanos.” Espionagem, depreendeu. Fotografou detalhadamente os efeitos da passagem do tempo pelo edifício, a tinta descolada, a ferrugem dos equipamentos metálicos, das escadarias.

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À esquerda, um relógio congelado no ano de 1993; à direira, livro de propaganda soviética esquecida num dos escritórios do cosmódromo Baikonur ©Jonathan "Jonk" Jimenez

À cautela, para evitar detenção por parte das patrulhas militares, o grupo organizou turnos de vigia em pontos estratégicos. O local onde pernoitaram era visitado algumas vezes ao longo do dia. “A técnica dos militares era muito simples: entravam no hangar, colocavam-se ao centro, em silêncio, na esperança de ouvir qualquer ruído. Se nada se ouvisse, saíam.” Raramente o grupo se sentiu em risco. “Numa das vezes”, narrou “Jonk”, “um dos militares entrou acompanhado de família ou amigos”. “Nesse momento, eu estava debaixo de um dos vaivéns – o local mais exposto de toda a base.” Apesar do perigo iminente, o grupo nunca foi detectado.

O fotógrafo francês entrou, já perto do final do segundo dia, num dos vaivéns da base 112a. Através de uma escadaria metálica e vertical em mau estado de conservação, entrou num “reino de metal despido”, descreveu. “À semelhança de outros locais abandonados que já visitei, os ladrões de metal chegaram antes de mim. Não sobrou muita coisa, mas ainda eram visíveis os painéis de controlo, assim como os dois grandes assentos para os pilotos.” Na parte traseira, os corredores tinham corrimões de metal de cada lado, “claramente para facilitar a movimentação dos astronautas na ausência de gravidade”. Todo o interior dava sinais de ter sido pilhado. Algumas áreas eram de difícil acesso, sobretudo com o peso do equipamento nos ombros. “Algumas imagens só pude guardar na minha memória”, lamentou.

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No interior de um dos vaivéns da base 112a, no cosmódromo Baikonur ©Jonathan "Jonk" Jimenez

Durante a estadia do grupo, o pré-anunciado lançamento de vaivém foi realizado a partir de uma zona funcional de Baikonur. Jonk e os companheiros tinham planeado assistir ao descolar a partir do último andar da base onde se encontravam. O francês tencionava captar em time lapse toda a acção, mas o céu estava nublado e a visibilidade era muito reduzida. “Tudo o que se via era um distante trilho de luz resultante da ignição”, descreveu.

A despedida do local finalmente chegou. “Foi um momento muito emocionante”, rememorou Jonk. “Tínhamos conseguido! Passámos 48 horas no interior do cosmódromo, durante o período de um lançamento, sem sermos apanhados. Ainda podíamos ser, mas pelo menos as fotografias já eram nossas.” À 01h40, o grupo já se encontrava a caminho do ponto de encontro que foi combinado com o mesmo taxista, a 20 quilómetros de distância. “A viagem aproximava-se do fim. Quando chegámos, finalmente, à auto-estrada [já fora do perímetro russo], o silêncio que reinava no carro desde que entrámos foi quebrado. Todos suspiraram de alívio e se felicitaram mutuamente. ‘Conseguimos!’.”