Roteiro dos Museus do Algarve só foi publicado em português por falta de dinheiro para traduções

No Museu do Traje de São Brás de Alportel os utilizadores estão a reconstruir a história dos primos e parentes, a partir de fotografias antigas. A recolha, feita por voluntários, já soma mais de 60 mil imagens, de 600 famílias.

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Museu de São Brás de Alportel Rui Gaudêncio

A região algarvia possui um museu que se diz regional, mas o seu alcance esgota-se numa exposição etnográfica concebida à imagem e semelhança da política cultural do Estado Novo, na década de 1960. Situa-se no rés-do-chão do edifício da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). No plano da contemporaneidade, os profissionais que trabalham na área – através da Rede de Museus do Algarve (RMA) – lançaram a edição digital do Guia dos Museus do Algarve, mas apenas em português: “Faltou o financiamento [cerca de cinco mil euros] para as traduções”, lamenta o director do Museu de São Brás de Alportel, Emanuel Sancho, um dos coordenadores da rede, criada há 12 anos, para quebrar laços centralistas e dinamizar a oferta cultural regional

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A região algarvia possui um museu que se diz regional, mas o seu alcance esgota-se numa exposição etnográfica concebida à imagem e semelhança da política cultural do Estado Novo, na década de 1960. Situa-se no rés-do-chão do edifício da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). No plano da contemporaneidade, os profissionais que trabalham na área – através da Rede de Museus do Algarve (RMA) – lançaram a edição digital do Guia dos Museus do Algarve, mas apenas em português: “Faltou o financiamento [cerca de cinco mil euros] para as traduções”, lamenta o director do Museu de São Brás de Alportel, Emanuel Sancho, um dos coordenadores da rede, criada há 12 anos, para quebrar laços centralistas e dinamizar a oferta cultural regional

O roteiro, em formato ebook, com 81 páginas, dá a conhecer o espólio de mais de duas dezenas de estruturas museológicas. “Mostra-se aspectos da história da região, que se completam pela diversidade”, salienta Emanuel Sancho, destacando a relevância da primeira iniciativa – a exposição Do Reino do Algarve à região: mil anos de história e cultura algarvia, realizada em 2010. No passado mês de Fevereiro, surgiu, então, uma nova tentativa de mexer com os poderes regionais. As expectativas saíram goradas. O guia está ainda por traduzir para inglês, francês, espanhol e alemão, como estava previsto. “Fizeram-se reuniões, houve promessas da parte da Região de Turismo do Algarve (RTA), mas não se concretizaram”, justificou Emanuel Sancho. O custo, 4 360 euros, mais IVA, não teve cabimento.

Da mesma forma, a versão em suporte papel, que também chegou a ser equacionada, não avançou. O presidente da RTA, João Fernandes, questionado pelo PÚBLICO, desculpa-se: “Não apresentaram uma proposta concreta.” Ao mesmo tempo, com o objectivo de atrair mais visitantes na época baixa, decorre o Programa 365 Algarve – apoiado pelos ministérios da Economia e da Cultura, com 1,5 milhões de euros – para realizar 400 eventos culturais e de animação até ao mês do Maio. “Apoiam-se eventos momentâneos, prontos a sair, não os projectos duradores e que exigem maturidade”, lamenta Emanuel Sancho. A componente económica do turismo, prossegue, “está a impor uma série de regras [à cultura] e nota-se uma certa subserviência”.

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Emanuel Sancho, director do Museu de São Brás de Alportel Rui Gaudêncio

O Museu do Traje de São Brás de Alportel recebe mais de 20 mil visitantes/ano, num concelho de interior com cerca de 10 500 habitantes. Emanuel Sancho destaca o papel social que este equipamento desempenha, numa sociedade multicultural. “Por cada turista, temos seis utilizadores locais”, sublinha. O museu, propriedade da Santa Casa da Misericórdia, funciona como referência da vida da comunidade, a par do centro de saúde, posto dos Correios e outras instituições. “As pessoas fazem do museu a segunda casa.”

A dinamização do espaço é feita por 30 clubes, organizados em grupos de trabalho, desenvolvendo artes que se estendem da música ao artesanato, passando pelo teatro e o fado. As primeiras iniciativas partiram da comunidade dos estrangeiros residentes, com a realização de conferências, concertos e aulas de aprendizagem da língua portuguesa. O projecto, considerado emblemático, do envolvimento social da população, é o “clube da fotografia”. Todas as quintas-feiras repete-se o ritual. Emanuel Sancho abre a porta do gabinete para uma sessão de trabalho com os voluntários, na descoberta das ligações familiares, com muitos primos que emigraram para a Argentina e Brasil. O espaço, de repente, transforma-se num livro aberto de memórias, que vão se desenrolando durante três horas – o tempo que leva a sessão de identificação dos retratos antigos.

“Às vezes, são mais de 30 pessoas, e temos de mudar de sala”, observa. O arquivo digital já reúne retratos de de 600 famílias, com mais de 60 mil imagens, oferecidas ao museu. “Os museus continuam a ser focos de cultura fundamentais, mas estão subvalorizados”, reafirma Emanuel Sancho, fazendo a comparação com os apoios que são concedidos aos efémeros eventos culturais para o turista ver. São Brás de Alportel tornou-se num caso de estudo, pela empatia criada na comunidade. “Vêm cá estrangeiros, passam temporadas para estudar o envolvimento da população nesta obra colectiva”, enfatiza. Sobre o trabalho de campo na recolha das fotografias simplifica: “Sou apenas o moderador. Eles [os habitantes] é que andam de monte em monte a pedir os retratos dos parentes.”

Neste museu, aberto em 1986, cruzam-se as experiências entre estrangeiros e portugueses, integrados na mesma comunidade. Um ou dois exemplos: a acordeonista do grupo de música popular ucraniana, agora toca no grupo português “veredas da memória”. O flautista do grupo de jazz, inglês, entretanto, também mudou de clube: passou a tocar modinhas portuguesas. No concelho, estima o município, a comunidade de estrangeiros residentes representa mais de 10 % da população.

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Rui Gaudêncio

Escravatura na serra

No passado dia 18 de Novembro, realizaram-se as III Jornadas da RMA-Rede Museus do Algarve, em Albufeira, para discutir, entre outros temas, as “novas realidades patrimoniais e culturais”, tendo em vista os impactos da revolução tecnologia e digital. “Nós pomos em dúvida se vale a pena um museu regional”, observa Emanuel Sancho. O museu regional do Algarve, aparentemente, ficou parado no tempo.

O director do Museu de Portimão, José Gameiro, também coordenador da RMA, afirma, criticando o centralismo: “No Sul, o último museu nacional [ tutelado pelo ministério da Cultura], parou em Évora. O resto ficou a cargo dos municípios. No total existem mais de duas dezenas de estruturas museológicas, sem que haja um museu de arte contemporânea. A criação da RMA, diz Gameiro, “funciona como uma plataforma, informal, que aproxima e incentiva à criação de propostas colectivas”.

A próxima exposição colectiva que está a ser preparada pela rede aborda as questões relacionados com o mar, em diferentes perspectivas. Como é que um concelho do interior, como São Brás de Alportel, pode participar numa exposição sobre o mar? “Eu encontrei assuntos que ligam o interioridade ao mar”, responde Emanuel Sancho. E revela: “Temos uma lista de quase duzentas pessoas africanas, escravos.” Por isso, não estranhou quando, recentemente, lhe foram oferecer “três grilhetas [correntes de ferro], encontradas num estábulo”. “As correntes não se destinavam a prender animais, mas sim pessoas.”