O que é um filme?, pergunta o Doclisboa

Três objectos fora do comum para pensar a própria natureza do que é um filme em 2019: Eu Não Sou Pilatus, Um Filme de Verão e Un Film dramatique

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Uma das questões que têm atravessado o Doclisboa — e não só este ano — é a própria noção do que pode ser um documentário, e, no limite, um filme. Como é que a câmara pode transmitir e, ao mesmo tempo, respeitar a realidade e a realidade daqueles que filma? Corre-se, nesse processo, o risco da condescendência, da generalização, da incompreensão. Não é preciso ir mais longe do que ver o que o luso-guineense Welket Bungué faz na curta Eu Não Sou Pilatus (Competição Internacional; repete quinta 24 às 14h na Culturgest em abertura de Santikhiri Sonata): um vídeo tirado do Facebook onde se filma a forte presença policial durante uma manifestação, pretexto para a autora do vídeo desfiar em off um rol de afirmações condescendentes, racistas e privilegiadas.

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Uma das questões que têm atravessado o Doclisboa — e não só este ano — é a própria noção do que pode ser um documentário, e, no limite, um filme. Como é que a câmara pode transmitir e, ao mesmo tempo, respeitar a realidade e a realidade daqueles que filma? Corre-se, nesse processo, o risco da condescendência, da generalização, da incompreensão. Não é preciso ir mais longe do que ver o que o luso-guineense Welket Bungué faz na curta Eu Não Sou Pilatus (Competição Internacional; repete quinta 24 às 14h na Culturgest em abertura de Santikhiri Sonata): um vídeo tirado do Facebook onde se filma a forte presença policial durante uma manifestação, pretexto para a autora do vídeo desfiar em off um rol de afirmações condescendentes, racistas e privilegiadas.

Bungué manipula a imagem e o som para desmontar e denunciar as contradições e as falsidades no discurso da autora do vídeo (fica célebre a frase “que me desculpem os meus amigos negros do Facebook, mas...”). Mas se este tipo de manipulação representa um legítimo gesto de cidadania revoltada, é legítimo também perguntar se este curto exercício (11 minutos) de agit-prop digital, testemunho astuto de um racismo presente logo abaixo da superfície, é no limite um filme. A sua urgência exige um espaço de difusão mais alargado e menos limitado do que a sala de cinema.

Eu Não Sou Pilatus ainda será, então, um filme tal como nos habituámos a pensá-lo, ou antecipa outra coisa, outra ideia de cinema que ainda não abrangemos por completo? Questão ontológica a que só o olhar de cada observador poderá responder, mas que se prolonga para duas longas-metragens que a integram na sua própria construção.

Um Filme de Verão (Competição Internacional; repete quarta 23 às 10h30 na Culturgest) é consequência do projecto transdisciplinar Diário de Férias, animado por Jô Serfaty em 2015 e 2016 na favela do Rio das Pedras, no subúrbio carioca de Jacarépaguá. Un Film dramatique (secção Da Terra à Lua; Culturgest, quarta 23 às 21h30 e quinta 24 às 10h30) surge do trabalho realizado por Éric Baudelaire ao longo de quatro anos com os alunos de uma escola dos subúrbios parisienses. Em ambos os casos, o que os cineastas e os jovens que participam fazem equivale à descoberta de múltiplos entendimentos do que o cinema é e pode ser – e, como diz um dos alunos de Baudelaire às tantas, “um filme pode ser tudo e qualquer coisa”.

No caso de Um Filme de Verão, esse “tudo e qualquer coisa” é uma realidade auto-ficcionada por Karol, Caio, Junior e Ronaldo, os quatro jovens a que Serfaty “entrega” o filme: os últimos meses de férias entre o final da escolaridade e a entrada no mundo adulto, uma entrada na idade adulta vista pelos olhos de jovens da favela mas recusando os lugares-comuns. Os quatro amigos fazem exactamente o mesmo que os seus contemporâneos do Leblon ou da classe média fariam: ouvem música, saem com amigos, vão à praia, enviam currículos, inventam vídeos de viagens para o YouTube. É, reconhecivelmente, um filme – o título, claro, é irónico: estas férias de Verão nada têm a ver com a imagem idílica perpetuada pelas comédias americanas, mas estão muito mais próximas de uma realidade partilhada por milhões de jovens.

Em Un Film dramatique, Éric Baudelaire literalmente “entrega” o filme nas mãos dos seus alunos articulando, com a mão preciosa da montadora Claire Atherton, diferentes olhares e diferentes maneiras de aprender e apreender o cinema a partir de uma multiplicidade muito variada de materiais. Não existe uma narrativa, nem sequer um foco; apenas o percurso de uma turma adolescente que aprende a pensar o cinema de forma lúdica e descontraída, uma experiência que olha para o quotidiano a partir de dentro (num slogan às tantas colado por um dos alunos, lê-se: “pour une vie plus belle allons vers le réel” - “para uma vida mais bela dirijamo-nos para a realidade”). É a realidade que Un Film dramatique regista, num objecto que se pensa a si próprio de forma lúdica e se abre ao acaso com uma inegável espontaneidade. O título é também irónico – vem das discussões de Baudelaire com os alunos, no início do projecto, sobre o que é um filme. Alguém disse “um filme é uma coisa que nos transporta”; Un Film dramatique fá-lo, mesmo que de modos que não esperaríamos.