Única acusada no processo do incêndio que destruiu o Pinhal de Leiria nega autoria

Sexagenária diz que foi acordada pela vizinha. Fogo foi dado como extinto horas depois, mas reacendimento foi uma das ocorrências que deu origem ao incêndio.

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Fogo destruiu Pinhal de Leiria em Outubro de 2017 Adriano Miranda/arquivo

Não deu início ao incêndio, estava a dormir a essa hora e foi uma vizinha que a acordou. A única acusada na investigação do incêndio que devastou 86% da Mata Nacional de Leiria, em 2017, negou que tenha sido ela a dar origem às chamas. 

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Não deu início ao incêndio, estava a dormir a essa hora e foi uma vizinha que a acordou. A única acusada na investigação do incêndio que devastou 86% da Mata Nacional de Leiria, em 2017, negou que tenha sido ela a dar origem às chamas. 

Na primeira sessão do julgamento, que teve início nesta quinta-feira, no Tribunal de Alcobaça, a arguida procurou contrapor a tese da acusação, que sustenta que a mulher de 68 anos lançou fogo a um terreno junto à sua residência, na Burinhosa, no concelho de Alcobaça, para eliminar um silvado.

Xana, como é conhecida, garantiu ao tribunal que foi acordada às 6h25, por uma vizinha, que lhe bateu à janela, avisando-a de que havia fogo atrás do quintal. Uma sequência de eventos questionada pela juíza, que citou o processo, onde consta que o alerta do incêndio foi dado às 6h54, sendo que os bombeiros só chegaram ao local pelas 7h15. No entanto, a sexagenária, que está acusada pelo crime de incêndio florestal,​ assegura que os operacionais chegaram antes. 

Defesa e acusação procuraram dissecar as condições de mobilidade da arguida, que é doente oncológica, os seus hábitos e condição de acesso ao ponto onde teve início o incêndio, junto do muro da moradia térrea com quintal.

Após identificar o local de ignição, o inspector da PJ, João Francisco, num depoimento prestado por videoconferência, referiu que, na vizinhança, as pessoas diziam que era frequente haver por ali fogo ateado para controlar as silvas. No entanto, ninguém terá apontado o dedo directamente à arguida. Questionado pelo procurador do Ministério Público (MP) sobre a possibilidade de se aceder ao ponto onde o incêndio foi ateado pelo lado fora da propriedade, também não foi taxativo: “Impossível não seria, mas [era] pouco provável.” E acrescentou que, para quem quisesse dar início ao fogo, o mais lógico era que o fizesse de dentro da propriedade de Xana.

Não foi detectado qualquer artefacto incendiário no local, pelo que o inspector deduz que o incêndio tenha sido iniciado com um isqueiro. A hora de início do incêndio, esclarece João Francisco, corresponde ao momento em que foi dado o alerta por telefone. 

De manhã foi também ouvida Maria Coelho, a vizinha, que confirmou ter batido à janela de Xana, depois de ter batido à porta, avisando-a da proximidade do fogo. “Não respondeu logo, ainda demorou um bocado”, referiu. Uma demora que tinha sido justificada pela arguida com a sua doença, que lhe condiciona a mobilidade. Tinha também dito que tem o sono leve, mas que não tinha acordado mais cedo. 

No entanto, o procurador do MP insistiu na questão, apontando para uma contradição de Maria Coelho. O que estava a dizer ao tribunal – que Xana tomava comprimidos para dormir e que sofria de alcoolismo – não batia certo com o que tinha dito à PJ durante a fase de inquérito. 

O procurador voltou a insistir e a mesma testemunha acabou por dizer que a vizinha tinha “problemas com a bebida”, declaração que mereceu um pedido de clarificação do advogado de defesa, João Barata Inácio, que subiu o tom. O que são problemas com a bebida? “Nunca a vi lá a cair. Que ela bebia às vezes de mais, bebia”, respondeu Maria Coelho. O procurador do MP queria também saber se Xana tinha por hábito andar alcoolizada pelo quintal enquanto fumava e Maria, depois de novas investidas do procurador e do advogado, lá acabou por admitir que nunca tinha visto tal coisa. 

“Isso não faz sentido nenhum”

Já de tarde, o filho da arguida, também testemunha, negou que a mãe tivesse problemas com o álcool. “Isso não faz sentido nenhum”, afirmou Hélder Neves, que se dirigiu a casa da mãe naquela madrugada. Conduzido por Barata Inácio, acabou também por fazer menção a um episódio em que Maria Coelho terá agredido Xana.

A sessão da tarde tinha começado 25 minutos atrasada, com direito a mudança de sala por conta de um bloqueio do Citius. Miguel Matos foi o primeiro a testemunhar, assim como tinha sido o primeiro a ligar para o 112 naquela madrugada de 15 de Outubro, diz. O operador de máquinas ia a passar quando deu pelo incêndio. Devia ser umas 6h00, mas já não sabe precisar. Também não se recorda se já havia sinais de actividade na habitação de Xana.

Era domingo de madrugada e João Tavares, também residente na Burinhosa, chegava a casa vindo “de um jantar” quando reparou nas chamas. Também ligou para as autoridades, mas não recorda as horas exactas. No entanto, atestou que Xana tem mobilidade reduzida: “Sei que tem doenças, que anda devagarinho” e que já assim era em 2017, acrescentou. Algo que Hélder Neves, também bombeiro, viria a sublinhar, referindo que a mãe tem “falta de equilíbrio e mobilidade”.

Augusto Gomes foi a última testemunha do dia. O bombeiro voluntário de Pataias quase não necessitaria de responder às perguntas iniciais da juíza para se identificar. De boina na mão, crachá encarnado na camisola azul com risca vermelha, Augusto respondeu às questões do procurador, confirmando que, além da doença, Xana “é uma pessoa normal”. Nada de bebida em demasia nem de fumo compulsivo, portanto.

“A nossa missão é o combate”, declarou Augusto Gomes, entre as perguntas que procuram clarificar se o quintal de Xana seria de fácil ou difícil circulação. “Combateu-se, rescaldou-se” e os bombeiros foram embora, descreveu. 

Pelas 10h18 o fogo foi dado como extinto, tendo consumido 0,21 hectares, depois de ter sido combatido por 17 bombeiros de Patais e da Nazaré. No entanto, foi um reacendimento na Burinhosa a contribuir para o incêndio que percorreu a faixa costeira, até à Praia da Leirosa, na Figueira da Foz, destruindo 9 mil dos 11 mil hectares do Pinhal de Leiria. De acordo com a Agência Lusa, a acusação sublinha que “não pode o reacendimento ser juridicamente imputado à acção inicial da arguida”. 

A 15 de Outubro de 2017, dois reacendimentos deram origem ao incêndio do Pinhal de Leiria: um deles na Burinhosa, outro na Praia da Légua, que tinha deflagrado na tarde de 12 de Outubro, resultado de possível fogo posto. Os dois reacendimentos verificaram-se ao início da tarde de 15 de Outubro, a 10 quilómetros um do outro e com um intervalo de 42 minutos, sendo que depois se juntaram num único incêndio, que só seria dado como extinto cinco dias depois, na Figueira da Foz. O reacendimento da Burinhosa, que teve origem nas traseiras da casa de Xana, registou-se a partir das 14h33. As condições atípicas daquele dia – o tempo seco e os ventos do Sul – ajudaram à propagação.