Homem confessou homicídio, mas o assassino era outro

Condenado em tribunal, homem estava há mais de dois anos preso quando outro indivíduo se entregou num posto da GNR alegando que, afinal, o autor do crime era ele.

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Quando Armindo foi detido, em Junho de 2012, pela morte da tia de 73 anos, tudo parecia fazer sentido. Havia desavenças, por causa da herança. E, levado a fazer uma reconstituição do crime pela Polícia Judiciária, o homem confessaria ter sido ele quem matara Odete a 29 de Março daquele ano. Por isso, também não foi surpreendente que em Novembro do ano seguinte o Tribunal de Famalicão o condenasse a 20 anos de prisão, por homicídio qualificado. Surpreendente mesmo foi quando em Outubro de 2014 outro homem se entregou à GNR de Guimarães, confessando ter sido ele o assassino da mulher, e de outra vítima, cuja morte continuava por resolver.

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Quando Armindo foi detido, em Junho de 2012, pela morte da tia de 73 anos, tudo parecia fazer sentido. Havia desavenças, por causa da herança. E, levado a fazer uma reconstituição do crime pela Polícia Judiciária, o homem confessaria ter sido ele quem matara Odete a 29 de Março daquele ano. Por isso, também não foi surpreendente que em Novembro do ano seguinte o Tribunal de Famalicão o condenasse a 20 anos de prisão, por homicídio qualificado. Surpreendente mesmo foi quando em Outubro de 2014 outro homem se entregou à GNR de Guimarães, confessando ter sido ele o assassino da mulher, e de outra vítima, cuja morte continuava por resolver.

Foi um imbróglio, uma confusão de tal ordem que levou a uma situação inédita em Portugal: um novo julgamento, com pessoas acusadas de terem cometido o mesmo crime em circunstâncias distintas. No final, Armindo, que estivera preso mais de dois anos, foi ilibado. Artur, que se entregou às autoridades, e a mulher dele, foram condenados.

No centro de tudo estava (está sempre em histórias de crimes), a vítima. Odete, de 73 anos, vivia sozinha, tinha poucos amigos e nem sequer conheceria os netos, por não manter contacto com as duas filhas há mais de três anos. O isolamento era tal que o seu corpo só seria encontrado quase duas semanas depois do crime, após um alerta de uma vizinha que estranhou deixar de ver a mulher. Mas conhecia o sobrinho, Armindo, com quem teria, segundo as investigações da Polícia Judiciária e a primeira acusação do Ministério Público, uma relação de conflito, motivada por questões de herança.

Foi este o motivo que, no entender dos investigadores, terá estado na origem do homicídio. Armindo teria empurrado a tia, na sequência de uma discussão na casa dela, em Joane, Famalicão, e quando ela caiu, asfixiou-a e agrediu-a na cabeça. Para que o caso fosse confundido com um roubo, levou a bolsa da mulher. Tudo encaixava, até alguém dizer que, afinal, tinha sido mesmo um roubo a estar na origem do crime e que Armindo não tinha nada que ver com aquilo.

Mas, para se chegar aí, foi preciso que passassem mais de dois anos. E, para baralhar a história toda, quando foi detido pela PJ e participou numa reconstituição do crime, sem a presença de um advogado, Armindo confessou ser ele o responsável pela morte da tia. Na comunicação social referia-se que ele tinha mesmo descrito pormenores do crime de que não poderia ter conhecimento a menos que estivesse presente.

Armindo seguiu, assim, para julgamento, com o rótulo de culpado colado às costas. Que nunca mais tenha repetido a confissão e passasse a clamar a sua inocência depois daquele primeiro momento, de pouco adiantou. O facto de se manter em silêncio no primeiro julgamento, também não terá ajudado. E nem o facto de os dados do seu telemóvel o colocarem bem longe do local do crime, na hora e data em que ele ocorreu, foi considerado relevante pelo colectivo de juízes. O telemóvel podia estar na posse de outra pessoa. E ele confessara.

O estudante saiu, por isso do tribunal, com uma pena de 20 anos, que seria reduzida para 12 anos pelo Tribunal da Relação do Porto, por se considerar que o que estava em causa não era um crime de homicídio qualificado mas o de ofensas à integridade física qualificadas, agravadas pelo resultado morte.

Aguardava-se a decisão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando, a 28 de Outubro de 2014, Artur, de 46 anos, entrou no posto da GNR de Guimarães. Naquele ano, em Abril, a senhoria deste homem fora assassinada, na Lixa, em Felgueiras. Culpados, até à data, não havia. Mas ele estava ali para resolver aquele crime. Fora ele quem a matara, incitado pela mulher e pelos problemas financeiros que enfrentavam, por estarem ambos desempregados, jurava. E, já agora, também fora ele quem matara a vizinha de cima, Odete. A culpa e a pressão exercida pela esposa, alegava ele, levaram-no a optar por um futuro mais do que certo atrás das grades.

E era aí, atrás das grades, que Armindo se encontrava naquela altura. A confissão de Artur mudou tudo. O advogado do sobrinho de Odete pediu a sua libertação imediata e em Dezembro o Tribunal de Guimarães ordenaria isso mesmo. Armindo estava preso há dois anos e seis meses. O Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República adiantaram que haveria inquéritos para perceber o que tinha acontecido.

Quando regressou a tribunal, Armindo já estava em liberdade, mas não ilibado. Em Março de 2016 o Supremo Tribunal de Justiça tinha deliberado que, para deixar de ser arguido, o homem teria de ser novamente julgado. Sentar-se-ia, por isso, no mesmo banco dos réus que Artur e a mulher Júlia, já ambos condenados pela morte da senhoria da Lixa.

Foi só neste último julgamento, em 2017, que Armindo ofereceu, finalmente, algumas explicações para a confissão que fora a principal razão da sua condenação. Disse que confessara por “um misto de estupidez, pânico e medo”, sentindo-se “ameaçado” pela Polícia Judiciária. Alegou temer ainda que a mãe, que o acompanhava, também pudesse ser detida. E quanto aos pormenores do crime que parecia conhecer tão bem, argumentou que apenas foi concordando com as “sugestões” que os agentes lhe faziam.

Já Artur admitiu ter ido a casa da vizinha de cima, munido com um tronco de eucalipto. Tocou à porta, ela abriu, e mal lhe virou costas, ele agrediu-a na cabeça. Quando ela caiu, cobriu-lhe o rosto com um casaco. Disse que não tinha intenção de matar, mas não convenceu o colectivo de juízas. Depois do crime, ele e a mulher regressaram ao apartamento para roubar uma série de bens. E tentaram usar o cartão multibanco da vítima, mas não conseguiram, por não acertarem com o código.

Em relação a Armindo, as juízas consideraram que toda a prova recolhida indicava que ele não tinha cometido o crime – registos de portagens e telemóvel, a presença numa aula, transacções realizadas no multibanco, mostravam que ele não podia estar na casa da tia à hora e dia do crime. Na leitura do acórdão, as juízas referiram que a reconstituição que tanto pesara na condenação do homem “não merece credibilidade para este tribunal”.

Em Janeiro de 2018 o julgamento em que Armindo, Artur e Júlia eram acusados do mesmo crime por razões diferentes terminou, com a absolvição de Armindo e a condenação de Artur e de Júlia – ele a 20 anos e sete meses de cadeia e ela a 18 anos e sete meses.

A história, contudo, ainda não acabou. Já este ano soube-se que Armindo avançou com uma acção contra o Estado, exigindo uma indemnização de cerca de meio milhão de euros, pelo que o seu advogado classificou como “um erro clamoroso da Justiça”.