“Os indígenas brasileiros sabem que isto se pode tornar numa guerra contra eles”

Susana de Matos Viegas, antropóloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, especialista em estudos ameríndios, alerta que a política de Bolsonaro pode levar ao extermínio dos povos indígenas do Brasil.

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Dois índios mundurukus guardando a entrada do edifício da Funai, quando o invadiram em protesto contra a construção da barragem de Belo Monte, em 2013 Lunae Parracho/REUTERS

A antropóloga Susana de Matos Viegas acompanha há muito os povos indígenas na Amazónia. Entre 1997 e 2009, fez trabalho de campo com os Tupinambá de Olivença, no sul da Baía, Nordeste do Brasil. Trabalhou para a Fundação Nacional do Índio brasileira (Funai) e a investigação que desenvolveu foi publicado em livro, Terra Calada: Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. É, desde 2018, membro do Conselho Editorial Externo da revista Maloca –​ Revista de Estudos Indígenas, do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI-Unicamp/Brasil).

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A antropóloga Susana de Matos Viegas acompanha há muito os povos indígenas na Amazónia. Entre 1997 e 2009, fez trabalho de campo com os Tupinambá de Olivença, no sul da Baía, Nordeste do Brasil. Trabalhou para a Fundação Nacional do Índio brasileira (Funai) e a investigação que desenvolveu foi publicado em livro, Terra Calada: Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. É, desde 2018, membro do Conselho Editorial Externo da revista Maloca –​ Revista de Estudos Indígenas, do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI-Unicamp/Brasil).

A morte do líder indígena Wajãpi é um sinal de que a situação dos povos indígenas vai piorar?

É um sinal de que se está a concretizar o pior que podia acontecer, e é apenas o início. Foi nomeado um novo presidente da Funai [Marcelo Augusto Xavier da Silva] no mês passado, depois de o anterior presidente ter saído, que, apesar de não ser a melhor escolha, não era como este: um elemento da polícia que chegou a assinar, em 2017, um relatório contra muitas lideranças indígenas, antropólogos e missionários e que fez acusações criminosas e inaceitáveis. Está alinhado com a política explícita de Bolsonaro, que é genocida.

A Funai perdeu 50% dos recursos no Governo de Temer e agora no de Bolsonaro perdeu a competência de demarcar as terras indígenas. Para além de ser uma estratégia de enfraquecimento da instituição, a nomeação pode servir para a transformar num outro tipo de organismo, mais apostado na repressão?

Desde que Bolsonaro tomou posse – e é verdade que já no Governo de Temer muitas coisas preocupantes estavam a acontecer – e o novo presidente foi nomeado que se sabe que os interesses da bancada ruralista – absolutamente contrários aos da população indígena – estão no fundo a governar. Já na altura se dizia que era como pôr uma raposa no galinheiro. Isto é muito mais grave do que só dizer que perderam recursos – isso é o que está a acontecer nas universidades e talvez seja uma estratégia para as enfraquecer e à Educação no geral. Mas isto é muito mais grave: estão a governar a questão indígena com políticas e visões do mundo não apenas opostas à dos indígenas como efectivamente genocidas.

É também de ter em conta nesta situação dos wajãpi terem sido garimpeiros a invadir e o facto de Bolsonaro ter feito declarações muito explicitas a dizer que ia deixar entrar a mineração em terras indígenas. Isto cria uma legitimidade para que os garimpeiros invadam, matem e façam aquilo que acharem por bem. Além disso, os Wajãpi não tiveram uma resposta imediata por parte do Governo, por terem demorado muito tempo a contactar a Funai e a polícia e daí terem começado a fazer contactos. Há dois problemas: a entrada dos garimpeiros e a falta de apoio numa situação destas.

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Susana de Matos Viegas DR

Como vê a estratégia de Bolsonaro para a Amazónia?

Tem dito muito explicitamente estar interessado na exploração da terra, nomeadamente a da mineração, e aquela aérea indígena é realmente rica em ouro. Já tiveram invasões muito problemáticas e violentas na década de 1970 e na de 1980, e esta invasão traz memórias de um período em que a situação foi gravíssima. Nunca pensaram estar à mercê de uma selvajaria que no fundo estava a acontecer durante a ditadura e que teoricamente tinha acabado.

Bolsonaro tem dito estar contra a demarcação de terras – não estamos a falar de novas terras, mas daquelas que existem –, e a favor da entrada de garimpeiros em áreas indígenas, do aluguer das terras, o que é inconstitucional. No fundo, o que diz é que as áreas que até agora estavam protegidas entrem no mecanismo global de exploração fundiária. E desde o início que há um enorme receio de como é que seria implementado.

Este assassinato é um sinal particularmente vermelho de que podemos estar perante as primeiras concretizações de um processo gravíssimo para todos nós. Ao longo da História sempre tem havido uma grande tensão entre as organizações internacional que chamam a atenção para o facto de a Amazónia ser importante para todo o mundo. Também há a utilização dessas chamadas de atenção por parte dos governos mais reaccionários no Brasil dizendo que isso é uma intervenção em questões nacionais. É um argumento que Bolsonaro está a usar para dizer que ninguém se tem de pronunciar sobre a Amazónia.

Acha que a violência dos garimpeiros é um dado claro, mas que os indígenas podem tentar retaliar com luta armada e acabar massacrados?

Nos anos 1970 viraram-se contra os garimpeiros por não terem outra opção, por não terem apoio por parte do Estado. Houve não apenas um massacre por violência directa, como entrada de epidemias que matou imensa gente. Têm uma terra demarcada desde meados dos anos 1990 e conseguiram manter uma autonomia bastante saudável do Estado brasileiro. De facto, o que se sabe é que tentaram realmente pedir apoio para se defender, e vão fazê-lo de alguma maneira. Numa guerra destas não vale muito a pena pensar em quem é que ganha. O que interessa é que os garimpeiros são uma força ilegal, não há como o Presidente não chamar as forças de segurança para o impedir.

Este assassinato pode ser uma provocação para os wajãpis declararem guerra aos garimpeiros e serem massacrados?

Sabemos que historicamente há comportamentos muito diferentes da parte dos grupos indígenas nas terras baixas da América do Sul. Ainda hoje [esta segunda-feira] houve uma série de notícias sobre os mundurucus, que há muito tempo estão zangados em relação à forma como o Estado os tem desprotegido. Os wajãpis são conhecidos pela sua tentativa de encontrar uma solução que não passe por um ataque directo. Ficaram completamente em pânico e, embora a geração mais jovem, não tenha vivido o que se passou nos anos 1970, ouviu sempre a história de que morreu muita gente. A entrada de garimpeiros pode ser o início de um processo muito maior de genocídio. Desde que Bolsonaro tomou posse que os indígenas estão conscientes do perigo que enfrentam e não estão desprevenidos. Muitas das lideranças com quem falei nos últimos tempos tentam que o medo não os paralise, mas sabem que isto se pode tornar numa guerra contra eles.

Que género de preparativos estão a fazer?

Psicológico, digamos. Têm tentado não se desmobilizar pelo medo. No caso wajãpi, não são sociedades guerreiras, ou seja, não têm estratégias organizadas para contra-atacar. Vão defender-se e tentar que os seus aliados e apoiantes também o façam – organizações internacionais e todos aqueles que no Brasil, não sendo indígenas, os apoiam. A grande força no Brasil tem sido essa: têm aliados. Mas a sociedade brasileira está muito dividida, apesar do Presidente que tem.

Os wajãpis não são uma tribo guerreira, mas há outras que são, como os mundurucus, que fizeram 100 km a pé para expulsar madeireiros.

Os mundurucus acharam que não estavam a ter apoio suficiente dos não-índios  e fecharam-se em si próprios, entrando numa política de autonomia total. E são, historicamente, grupos com capacidade de organização e defesa muito mais consolidadas. Ao contrário da propaganda do Governo, que imagina a existência de uma espécie de aliança dos povos indígenas, não se conhece até hoje nada do género. Pode acontecer que os mundurucus se desloquem para ir ajudar os wajãpis, mas acho difícil que aconteça.

As tribos têm muitas divergências entre si? Como se relacionam?

Os contactos resultam de um certo tipo de associativismo, seja político ou cultural, e acontece a diferentes níveis territoriais. Há associações fortíssimas, com grandes capacidades de articulação. Uma das características do contacto com a sociedade nacional é que se dirimiram os maiores conflitos entre os diferentes povos, e a presença do Estado foi a maneira de os resolver. Não se conhece conflitos abertos e os povos têm mais interesse em batalhar em comum do que em divergir. Há posições diferentes, culturas diferentes e pontos de vista diferentes, mas, no que diz respeito à garimpagem, demarcação de terras indígenas e desmatamento todos têm uma posição equivalente.