70% de tristeza

Um país que se alheia desta forma do seus próprio destino, é um país que despreza a democracia, o bem comum, e em último caso, a si mesmo.

Concluído que está mais um acto eleitoral, há dois factos a destacar, por razões contrárias. 

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Concluído que está mais um acto eleitoral, há dois factos a destacar, por razões contrárias. 

O primeiro, a vitória do Partido Socialista que quebra mais uma vez a “tradição” que ditava que o partido que está no governo não vence eleições europeias. Não foi assim desta vez, o país reconhece as nossas qualidades. 

As qualidades de um PS forte com provas dadas nacional e internacionalmente, que reconquistou o respeito das instituições europeias e a confiança dos investidores, ao mesmo tempo que devolveu rendimentos aos cidadãos e criou condições a um país que tinha estado esquecido, ao abandono e à sua sorte. Tempos negros e austeros que ficaram lá atrás, jamais esquecidos. 

O segundo fenómeno é mais do que preocupante, chega a ser revoltante, quase pornográfico: uma abstenção de quase 70% dos eleitores. Setenta por cento! Sete em cada dez, setenta em cada cem, setecentos a cada mil, 7 milhões em dez milhões! Isso mesmo. Escrevo assim para que se perceba a gravidade dos factos e dos números.

Pior ainda, porque estes números são pessoas, são cidadãos como eu e você que se demitiram de fazer valer a sua voz, fazer valer o seu direito de decidir pelo seu voto, único e intransmissível, os destinos colectivos do país, e neste caso, da nossa representação no parlamento europeu.

Devia estar euforicamente contente pelo histórico resultado do Partido Socialista, mas não estou. Não posso estar, quando o principal vencedor, o destacadissimo vencedor com quase 70% das intenções, ou melhor da indiferença dos eleitores foi o “não quero saber”. Poderíamos dizer que é o tema europeu que não é mobilizador, a Europa é lá longe. 

Mas a  Europa é aqui. Somos nós. 

Poderíamos dizer que é a indiferença generalizado pelos assuntos da política. Porém, não vemos tanta indignação, tanta vontade de elevar a voz, contestar, apupar, reivindicar e exigir resultados dos eleitos sempre que o poder político é chamado a exercer o mandato que recebeu. Não vemos a mobilização dos que lutam pelos seus direitos, por melhores condições, por mais oportunidades em todos os lugares ao longo de um mandato? Então não é indiferença, é alheamento. É falta de cultura democrática. É desvalorizar o sistema vigente. É desrespeitar a democracia naquela que é a sua mais nobre expressão, o voto. 

A democracia é vista pelos seus “alheados” como um sistema onde é possível gritar, ofender, violentar, difamar sem censura. Uma democracia do “vale tudo” e “pode tudo”, até mesmo não exercer a democracia. Poderíamos deixar-nos levar pelos argumentos que se vão lendo aqui e ali de que os cidadãos não acreditam na democracia, na classe política, que são todos iguais, que são sempre os mesmos. 

No entanto nunca tiveram tantas opções no mesmo boletim de voto. Da esquerda à direita, dos partidos mais institucionais aos movimentos de cidadãos, dos partidos mais tradicionais aos novos partidos. Não foi por falta de opções.

Então o que falta fazer? A quem falta fazer? São os políticos, cidadãos como todos os outros que têm que mudar? Em quê? São os cidadãos que deverão ser mais comprometidos com os seus próprios destinos? Como? São os partidos que deverão dar lugar a movimentos cívicos? Em que medida? Não se transformam também esses mesmos movimentos em partidos? E como se garante o equilíbrio da democracia?

São questões pertinentes que me indignam como portuguesa. Um país que se alheia desta forma do seus próprio destino, é um país que despreza a democracia, o bem comum, e em último caso, a si mesmo. Não haverá futuro garantido quando todos nós alhearmos dele. E quando alienamos o nosso mais precioso direito - o voto, alguém passa a decidir por nós... até não termos liberdade nenhuma.

Poderia defender o voto obrigatório, poderia defender um sistema de pequenas penalizações no acesso aos serviços públicos, poderia defender um maior comprometimento da imprensa, poderia defender tantas coisas que seriam certamente apelidadas de atentados à liberdade de se querer ou não votar. Não o farei, pelo menos neste artigo. 

Defendo sim, um sistema educativo onde a cultura democrática seja inserida e enraizada nos conteúdos pedagógicos no segundo ciclo, onde sejam transmitidos aos jovens os valores da República, da democracia, o que muitos sofreram para eles e elas poderem votar e decidir sobre as suas vidas. Onde seja ensinado o valor supremo de uma democracia plena. Onde seja transmitido que o direito ao voto, é também uma obrigação e porquê? Que esse direito conquistado pode deixar-se resgatar às mãos de populismos que vão ganhando espaço, aproveitando o silêncio dos alheados. 

Educação, educação, educação, é na educação que os filhos dos filhos de Abril devem acordar para as suas obrigações e direitos enquanto cidadãos e fiéis guardiões da nossa demos kratia

Por fim, também podia dizer que é uma vergonha... mas infelizmente acho que é uma tristeza....