Exaustão afecta dois terços dos médicos

Problema “com raízes no sistema de saúde”, diz estudo publicado na Acta Médica Portuguesa. Ordem vai criar um gabinete de apoio aos clínicos.

Foto
Rui Gaudencio

Dois terços dos médicos dizem estar em exaustão emocional, segundo um estudo que vai ser publicado esta semana na Acta Médica Portuguesa e que considera o burnout na classe como um problema “com raízes no sistema de saúde”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Dois terços dos médicos dizem estar em exaustão emocional, segundo um estudo que vai ser publicado esta semana na Acta Médica Portuguesa e que considera o burnout na classe como um problema “com raízes no sistema de saúde”.

Mais de nove mil médicos foram inquiridos neste estudo, que foi realizado em 2016 e actualizado em 2017, sendo agora pela primeira vez publicado de forma integral. A amostra analisada representa cerca de 20% dos médicos registados na Ordem.

No estudo, a que a agência Lusa teve acesso, 66% dos médicos mostram um nível de exaustão emocional e 30% referem acentuada diminuição da realização profissional. Quase 40% demonstram níveis elevados de despersonalização, que se caracteriza por atitudes de descrença ou indiferença e que está fortemente associado à síndrome de burnout.

“Valores tão elevados como os encontrados no presente estudo (...) conduzem desde logo à compreensão do burnout como um problema socioprofissional com raízes no sistema de saúde, não podendo ser justificado com base em características individuais relacionadas com fragilidades pessoais”, referem os autores do estudo, encomendado pela Ordem dos Médicos e realizado em parceria com o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Refere-se ainda que os resultados demonstram “o papel dos factores de natureza organizacional na explicação” das situações de burnout. As exigências do trabalho e os recursos organizacionais são vistos pelos médicos como a variável que explica uma maior proporção da exaustão emocional.

“Os melhores preditores de elevados níveis de exaustão emocional são, ao nível organizacional, a percepção de baixos recursos e de elevadas exigências associadas, designadamente, aos horários de trabalho e à relação com os doentes”, indica a análise que vai ser publicada.

O estudo salienta que o bem-estar dos médicos “é importante para o funcionamento do sistema de saúde em geral” e recomenda a intervenção urgente, através de programas dirigidos directamente à exaustão emocional e à diminuição da realização profissional.

Apesar destas conclusões, os investigadores registaram “níveis muito elevados de envolvimento com o trabalho”, considerando que é um indicador da “adaptação positiva da maioria dos médicos às condições” de trabalho adversas.

O estudo analisou ainda quais as especialidades com mais médicos com níveis altos e baixos de cada um dos indicadores de burnout: exaustão emocional, despersonalização e diminuição de realização profissional. Medicina interna, oncologia, doenças infecciosas, neurologia e hematologia são as especialidades com mais médicos com níveis altos de exaustão emocional.

No caso da despersonalização os valores mais elevados encontram-se na cirurgia geral, na hematologia, neurologia, urologia e ortopedia. As especialidades com mais médicos que sentem redução de realização profissional são a oftalmologia, medicina geral e familiar, doenças infecciosas, psiquiatria, cardiologia e dermatologia.

Os investigadores analisaram ainda quais as especialidades com maiores percentagens de médicos com valores altos em pelo menos dois indicadores e concluíram que a medicina de emergência, a medicina interna, a neurologia e a medicina familiar têm os valores mais elevados. Os níveis mais baixos verificaram-se na patologia, dermatologia, pediatria geral e medicina preventiva.

Ordem cria gabinete de apoio

A Ordem dos Médicos decidiu criar o Gabinete Nacional de Apoio ao Médico para ajudar os profissionais em situações de exaustão e também os que são vítimas de violência ou agressão. O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, diz que o apoio aos médicos vítimas de burnout ou de agressão é “absolutamente necessário”, adiantando que já tinha feito formalmente a proposta ao Ministério da Saúde.

“Até agora, do que é do meu conhecimento, o Ministério da Saúde não fez rigorosamente nada. Está-se nas tintas para o que está a acontecer aos seus profissionais de saúde, é aquilo que submerge das atitudes que os responsáveis políticos vão tomando”, lamentou Miguel Guimarães, em declarações à agência Lusa.

Para dar apoio aos profissionais, a Ordem decidiu criar um Gabinete de Apoio ao Médico, que deve definir estratégias de prevenção, bem como apoio prático e concreto. O bastonário adianta que a Ordem vai procurar a colaboração de outras instituições, sendo o Ministério da Saúde a primeira que será convidada. O responsável acrescenta que poderá ser pedida a colaboração a outras ordens profissionais, como a dos Psicólogos, e a unidades de saúde, públicas ou privadas, interessadas em ajudar.

O gabinete será coordenado pelos médicos Nídia Zózimo, João Redondo e Dalila Veiga e depois terá de ser criada uma via de acesso directo e protegida para os médicos que necessitem de ajuda.

A Ordem irá depois anunciar por email aos clínicos de que forma podem aceder ao gabinete. Numa fase inicial, os pedidos de ajuda podem ser feitos directamente ao bastonário, que remeterá as situações ao novo gabinete.

Além das situações de cansaço extremo — seja físico, mental ou psicossocial —, o Gabinete vai prestar também apoio a casos de violência ou de agressão. O bastonário recorda que a violência contra profissionais de saúde tem também vindo a crescer.

Mais de 950 casos de incidentes de violência contra profissionais de saúde foram registados só no ano passado, ficando 2018 como aquele em que mais episódios foram notificados. Os dados da Direcção-Geral da Saúde mostram que, do total dos 4300 casos acumulados desde 2007, a maioria respeita a assédio moral, mas 17% são mesmo casos de violência verbal e 12% são situações de violência física.