Agustina por Isabel Rio Novo: “Uma biografia não termina nunca”

Não é biógrafa, mas romancista. Também não é agustiniana, embora se confesse leitora compulsiva da autora de A Sibila. Acaba de publicar a primeira grande biografia de Agustina Bessa-Luís.

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Nelson Garrido

Professora universitária, ensaísta, romancista por duas vezes finalista do Prémio Leya – com Rio do Esquecimento (2016) e A Febre das Almas Sensíveis (2018) – e em vias de editar o seu quarto romance, fruto de uma bolsa de criação literária atribuída pela Direcção-Geral do Livro, Isabel Rio Novo acaba de publicar, na editora Contraponto, O Poço e A Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís.

Embora a biógrafa se coloque, porventura excessivamente, à sombra das citações da obra imensa de Agustina e não resista a sinalizar frequentemente a sua presença autoral, a leitura do livro é proveitosa e, em geral, prazenteira. Sobretudo, na parte concernente à infância, à juventude e aos primeiros anos do percurso literário da romancista. Curiosamente, e à medida que avançamos na leitura da vida de Agustina – para tempos mais próximos do nosso e sobre os quais é lícito supor a existência de mais abundantes fontes de informação –, a biografia parece tornar-se menos fluida e mais precipitada, um dos capítulos finais, por exemplo, sendo constituído praticamente por uma listagem dos prémios e outras distinções recebidos pela escritora, matéria que não ficaria mal em uma das utilíssimas notas que perfazem o repertório de fontes das oitenta páginas finais do volume.

Também não se percebe, por exemplo, que pertinência possa ter a informação, duas vezes afirmada entre as páginas 316 e 321, de que “Nassalete Miranda […] assumiria a direcção d’O Primeiro de Janeiro em 2000”, sendo esta fonte convocada para dar testemunho da passagem de Agustina pela direcção daquele jornal mais de uma década antes. Tal como enigmática permanece para nós a expressão “jogo de cintura” (p. 281) aplicada ao comportamento de Agustina no caso célebre que levou ao encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965.

Não sendo nem uma biografia “erudita” nem uma biografia “romanceada”, uma esquemática árvore genealógica e uma sucinta tábua cronológica e bibliográfica não seriam menos bem-vindas do que o índice onomástico existente. Diga-se, finalmente, que eventuais lapsos não devem deslustrar um volume de meio milhar de páginas e que é, em geral, vibrante e fundamentado.

Há notícia de que esta biografia, lançada no mês passado, é já um dos livros mais vendidos em algumas livrarias. A que se deverá tal sucesso?
Agustina é uma figura apaixonante, extraordinária, fascinante. Não duvido de que qualquer biografia sobre ela despertasse sempre interesse. Sobretudo por quem aprecia a sua obra, como é o meu caso. E eu procurei, evidentemente, valer-me das minhas competências para poder estar à altura desta imensa responsabilidade e deste imenso desafio. Quanto a vendas, ainda não falei com o editor, mas vários leitores já tiveram a gentileza de me fazer chegar as suas apreciações, muito positivas.

Temos, por vezes, a ilusão de conhecermos bem a vida de certos escritores, ou através da sua obra ou por terem tido relevante intervenção no espaço público. Será o caso de Agustina?
Sim, é verdade que eu, quando parti para esta biografia, conhecia em traços gerais as etapas principais do percurso literário e do percurso público de Agustina e, nesse sentido, não houve, de facto, grandes surpresas. Mas em cada episódio, em cada fase da sua vida, fui descobrindo coisas que eu não conhecia e, sobretudo, dimensões que eu não conhecia.

Essas “dimensões”, sobretudo as mais privadas, costumam desiludir-nos…
Pelo menos comigo, isso não se passou. Descobri certamente alguns traços que desconhecia, mas que tornaram Agustina, porventura, mais humana aos meus olhos. Porque para mim – como grande admiradora da obra de Agustina, que sou desde a adolescência, e como pessoa que chegou a ter o privilégio de a conhecer e também de a entrevistar, no início dos anos 2000 – foi um privilégio poder aproximar-me assim do contexto da sua vida. Descobrir traços que a tornam, enfim, humana como todos nós, só aumentou a admiração que tenho por ela.

A que traços se refere?
Por exemplo, uma coisa em que também me reconheço enquanto autora. No início da vida literária, Agustina teve dificuldades em afirmar-se, como é normal com jovens autores. E tocou-me ter encontrado na correspondência dela, nas cartas que enviou a escritores já consagrados, como Aquilino Ribeiro ou Ferreira de Castro – de quem, aliás, viria a tornar-se amiga –, pedidos de auxílio, falando, por exemplo, das dificuldades por que estava a passar, pedindo frases abonatórias que pudesse citar para corroborar a qualidade do seu livro – e estou a falar da primeira novela, Mundo Fechado, publicada em 1948. Ter descoberto que Agustina fez, no fundo, tudo aquilo que um jovem autor costuma fazer, tornou-a simpática, humanizou-a aos meus olhos.

Embora certos assuntos mais íntimos e domésticos – a morte do pai, o suicídio do irmão, a experiência da maternidade, um certo distanciamento ou até mesmo alguma frieza nas relações familiares – sejam abordados com cautela, descobriu aí alguma característica que a tenha surpreendido?
Essa “frieza” de que falou é mais ou menos assumida e ela própria, em entrevistas, sobretudo aquelas que deu mais perto daquele momento em que adoeceu e se retirou da vida pública – entrevistas que, aliás, eu cito abundantemente –, assumia essa espécie de reserva ou de distanciamento. O mesmo acontece com entrevistas que a filha de Agustina e a neta Lourença concederam e que eu também refiro na biografia. Mas há coisas que para mim foram uma descoberta. Por exemplo, a partir da leitura das cartas trocadas com José Régio, com [Maria Helena] Vieira da Silva e com Sophia de Mello Breyner, eu percebi que, no período em que morou em Esposende, mais ou menos coincidente com a morte do pai, Agustina viveu um período de depressão. E isso foi, de certa forma, uma descoberta, uma vez que a imagem que eu tinha de Agustina era a de uma mulher sempre muito forte e muito jovial. Eu conheci-a numa fase em que a vida dela era muito risonha, em que ela ria muito, e todos os meus entrevistados corroboraram esse traço de carácter. De modo que essa fase de depressão foi certamente uma descoberta. Ignorava-a, de todo.

Quando a convidaram para escrever a biografia, o que é que a levou a aceitar a encomenda?
Quando o Rui Couceiro [editor da Contraponto] me falou de uma colecção de biografias de grandes figuras do século XX e me convidou a participar, disse-me que era suposto os biógrafos serem romancistas. Fiquei, portanto, muito honrada com o convite. Ele propôs-me dois nomes. O primeiro seria alguém que eu também gostaria de biografar mas, quando me falou de Agustina, confesso que não hesitei, e creio que não foi só inconsciência [risos], foi mesmo sentir que tudo fazia sentido. Realmente, eu sou uma leitora compulsiva de Agustina desde que descobri A Sibila no final do ensino secundário, como leitura obrigatória; comecei a trabalhar sobre a obra dela, em contexto universitário, no início do milénio; nunca deixei de a ler e, portanto, quando abracei este desafio, sentia que não estava a começar do zero. Tinha já esse bom conhecimento da obra, o que não é de somenos, uma vez que Agustina, como sabemos, deixou muitas marcas biográficas na sua obra de ficção. E, se não me passou pela cabeça fazer a biografia de Agustina apenas e unicamente através da obra, não podia ignorar esse manancial, uma vez que a própria autora o corroborou em muitas ocasiões, tanto em textos memorialistas como em entrevistas que concedeu.

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Paulo Ricca/Arquivo

Foi esse conhecimento prévio que a levou a recorrer constantemente a remissões para a obra de Agustina na sua narrativa biográfica?
Essa grande quantidade de citações da obra de Agustina é, sem dúvida, uma característica desta narrativa, da qual se gostará mais ou menos, tal como eventualmente de outras marcas de estilo que estejam evidentes. Testemunham a admiração que sinto pela escrita de Agustina. Mas essa admiração é tão evidente que me parece desnecessário sublinhá-la. O que acontece é que quem aprecia a obra de Agustina gosta de encontrar essas referências e gosta de ver traçados esses paralelismos entre as personagens e a biografada. Eventualmente, quem gostar menos da obra de Agustina, ou a quem desagradar este tipo de referências, seguramente que não gostará tanto. Já ouvi pessoas referirem que as páginas com notas são excessivas; já ouvi outras pessoas elogiarem muitíssimo e considerarem que é uma espécie de outro texto que corre paralelamente ao texto da biografia. A cada leitor a sua sentença.

Agustina poderá autorizar nos seus textos certas interpretações biográficas, mas há sempre a possibilidade de tal ‘transparência’ ser apenas uma outra máscara…
Claro. Se eu tivesse feito isso teria caído numa espécie de armadilha das muitas encantadoras armadilhas de Agustina. Como sabemos, ela própria também mitificava ou mistificava muito as histórias que contava. É uma questão de procedimento. Se eu tivesse partido da obra para deduzir da obra as etapas biográficas de Agustina, provavelmente teria caído nesse logro. É diferente encontrar, através da indagação de outras fontes, essas etapas biográficas e, depois, constatar que elas podem surgir reflectidas na personagem A B ou C do romance X ou Y. É o percurso inverso. É diferente conhecermos a biografia de Agustina e percebermos que ela plasmou uma determinada experiência, um determinado lugar ou uma determinada reminiscência em algo que colocou na sua obra.

No início, apresenta o seu texto como um meio-termo entre uma biografia erudita e uma biografia romanceada…
É um desígnio, é uma aspiração. Depois, a concretização daquilo a que nós aspiramos, necessariamente, e como qualquer obra humana, tem as suas imperfeições e fica sempre aquém daquilo que pretendemos. Mas isso faz parte, enfim, da natureza humana.

… E esse meio-termo equilibraria “a natureza verídica do relato com a liberdade criativa da ficção”. Nesta biografia, quais são as marcas dessa liberdade?
Uma biografia é mais do que a reconstituição cronológica de factos, que eu procurei que fosse tanto quanto possível rigorosa e sustentada em fontes devidamente referenciadas. Mas, depois, é preciso construir com esses factos uma narrativa que seja interessante e, se possível, empolgante. E talvez tenha sido esse o desígnio do editor ao confiar a romancistas este trabalho, porque os romancistas são pessoas que estão habituadas a construir narrativas.

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Professora universitária, ensaísta, romancista por duas vezes finalista do Prémio Leya — com Rio do Esquecimento (2016) e A Febre das Almas Sensíveis (2018) — e em vias de editar o seu quarto romance, Isabel Rio Novo publica O Poço e A Estrada — Biografia de Agustina Bessa-Luís Nelson Garrido

Por mais extraordinária que seja a sua obra, a vida de um escritor pode ser absolutamente banal, ordinária. A narração biográfica deverá torná-la empolgante fazendo-se, ela própria, “empolgante”?
Sim, qualquer vida, de qualquer indivíduo, dá uma biografia. No caso de Agustina, provavelmente, muito do interesse já estava na própria biografada e na sua história de vida. Porque encontramos na vida de Agustina episódios dignos de qualquer livro de Agustina. Por exemplo, a forma como conheceu o marido, Alberto Luís, através do anúncio colocado n’O Primeiro de Janeiro. Portanto, esses episódios romanescos existiam à partida na própria biografia de Agustina.

O que poderá, eventualmente, surpreender, tratando-se de alguém a quem é costume atribuir uma existência reservada e puramente doméstica, exceptuando dois ou três períodos de maior exposição pública?
Que são uma boa excepção, apesar de tudo. Foi mandatária nacional da candidatura [à Presidência da República] de Freitas do Amaral, foi a primeira mulher a dirigir um jornal diário em Portugal, esteve à frente dos destinos do Teatro Nacional D. Maria II. Ou seja, acabou por desempenhar vários cargos públicos. Mas não me restam dúvidas, depois da escrita da biografia, de que aquilo que ela considerava, para usar as palavras que ela empregou, a sua missão, era escrever. Daí, eventualmente, a imagem que foi propalada, da escritora recolhida na sua casa [da Rua] do Gólgota, a escrever, sentada àquela mesa camilha que eu ainda conheci, e toda entregue à sua missão ou sacerdócio, outra palavra que ela usava.

O livro é balizado por duas datas: Abril de 2016 e Novembro de 2018. Esse corresponde ao tempo de investigação e escrita?
Corresponde ao tempo de redacção, ainda que eu não consiga fazer uma separação temporal absoluta entre a fase de recolha de elementos, a fase de pesquisa, e a fase de escrita. Porquê? Quando, por exemplo, reunia elementos suficientes para tratar de um episódio ou de um capítulo, a minha tendência era tentar escrever logo esse capítulo. Por outro lado, iniciada a fase de redacção, também acontecia que, às vezes, a redacção suscitava a necessidade de outras pesquisas ou de mais pesquisas. Mas, grosso modo, essas balizas temporais correspondem à fase de redacção.

Quando é que iniciou a pesquisa, o trabalho de campo?
Comecei em 2016, ainda que, por coincidência, em 2015 eu tivesse sido levada a repegar na obra de Agustina, por causa de um trabalho de cariz universitário que estava a fazer. Não me considero uma agustiniana, no sentido em que não consagrei a minha carreira académica toda ao estudo de Agustina, mas já tinha uma grande experiência de trabalhar sobre a sua obra e, portanto, já tinha também nos meus arquivos pessoais um conjunto de documentos que me permitiram não partir do zero para a investigação.

Quais foram as suas maiores dificuldades?
Não ter tido a colaboração da família no acesso aos arquivos privados da mesma ou em posse da mesma. Não ter tido acesso sequer a esclarecimentos que poderiam ter sido dados acerca de episódios ou de etapas da vida da minha biografada. E, depois, as dificuldades normais que qualquer investigador conhece, a que eu também já estava sobejamente habituada, e que são aquelas que decorrem da necessidade de aceder a arquivos, a espólios, as dificuldades de um trabalho que é muitas vezes moroso, rigoroso, cansativo; aquilo que é, enfim, habitual nestas circunstâncias, ter de recolher um conjunto de testemunhos de pessoas que nem sempre acedem a colaborar. Em contrapartida, também é justo dizer ter havido muitas pessoas que vieram ter comigo disponibilizando-se a facultar o seu testemunho e, mais do que isso, muitas vezes franqueando os seus arquivos privados, chamando-me a atenção para peças jornalísticas, para textos escondidos em publicações obscuras ou de difícil acesso. Enfim, coisas que qualquer investigador sério conhece como sendo as dificuldades naturais do ofício.

Exceptuada a não colaboração da família, compulsou as fontes necessárias e suficientes para certificar o trabalho?
Procurei que assim fosse, mas não direi, por exemplo, que coligi todas as peças jornalísticas relativas a Agustina, porque creio que é impossível sequer elencá-las todas. Com a ajuda de muitos dos meus entrevistados, coligi cerca de uma centena de peças jornalísticas, desde entrevistas concedidas pela autora até outras reportagens ou outros artigos acerca dela, recolhi textos autobiográficos e memorialistas, que também existem, consultei os registos oficiais, elaborei um plano de entrevistas, e também foi muito importante para mim a consulta das cartas dela em vários arquivos e espólios. E a própria visita aos lugares a que Agustina está ligada. Este aspecto é sempre muito importante para mim, em termos de escrita, mesmo quando escrevo romances.

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Nelson Garrido

Quanto à correspondência, teve acesso a tudo quanto julgou oportuno?
De um modo geral, sim, com a excepção de um livreiro que me recusou a consulta do espólio de um seu ascendente. A correspondência, ou estava em arquivos que não tinham reserva de consulta ou todos me facultaram a autorização de consulta. Posso até dizer que houve pessoas que recorreram aos seus arquivos privados e tiveram a gentileza de, compreendendo o intuito que estava subjacente a este projecto, disponibilizar correspondência que tinham e que nem sequer estava disponível em arquivos públicos. Há pessoas que têm uma visão mais abrangente, e mais inteligente e generosa, destas coisas do que outras…

Disse, numa entrevista ao Observador, que a família de Agustina tinha “invertido” a sua “posição inicial”, recusando-se a colaborar consigo. Ao jornal Sol, Mónica Baldaque, filha da escritora, disse entretanto que nunca se havia comprometido com o projecto da Contraponto. Em que ficamos? O que é que se passou, afinal?
São questões editoriais e nada melhor que os editores para as esclarecerem. De qualquer maneira, há uma parte que me diz directamente respeito nessa entrevista, que li. Aliás, se não a tivesse lido não me atreveria a comentá-la. O que aconteceu foi que o editor Rui Couceiro reuniu pela primeira vez com a dra. Mónica Baldaque em Setembro de 2017. No telefonema que me fez a seguir à reunião – eu não estive presente nessa reunião –, Rui Couceiro disse-me que tinha apresentado à dra. Mónica Baldaque o projecto da colecção de biografias, juntamente com a ideia de uma grande homenagem a Agustina, a realizar na Casa da Música, e indicou-lhe o meu nome como sendo a biógrafa. A dra. Mónica Baldaque, segundo o Rui me transmitiu – muito contente, claro –, encerrou a conversa com um “Vamos a isso!” muito promissor. E foi-me facultado até o telefone dela, para conversarmos uns dias a seguir. Alguns dias depois, segundo me deu conta novamente o editor, a dra. Mónica Baldaque terá falado com Rui Couceiro dando-lhe conta da inversão da sua posição inicial – embora ela não goste que se diga inversão –, sustentada em razões editoriais que, essas sim, não me compete comentar. Entretanto, infelizmente, o dr. Alberto Luís [marido de Agustina] faleceu, e o Rui e eu decidimos de comum acordo que durante uns meses não iríamos incomodar a dra. Mónica Baldaque com um assunto que, diante da perda do pai, realmente não tinha importância nenhuma. Mas, em Fevereiro de 2018, eu tentei ainda uma espécie de aproximação, solicitei uma reunião à dra. Mónica Baldaque, que acedeu a receber-me na Rua do Gólgota. De uma forma muito gentil mas irredutível, foi-me então reiterada a recusa de qualquer tipo de ajuda, desde a cedência de materiais até uma mera entrevista. Esta é a parte que eu posso esclarecer. Questões que tenham a ver com os contratos de edição e com a relação entre editores, remeto-o para quem de direito.

Em Fevereiro de 2018 a escrita da biografia já iria adiantada…
Sim, mas obviamente ainda haveria interesse. Não me restavam grandes lacunas na investigação, mas há certamente pontos, relativamente aos quais eu formulo meras hipóteses, que, eventualmente, com a ajuda e o esclarecimento da família, poderiam ter sido sustentados de outra forma ou até apresentados de outra forma. Mas estamos a falar de questões pontuais e que não afectam, penso eu, o retrato global de Agustina que resulta deste livro.

Teve outras desilusões com potenciais fontes?
Não… Muitas pessoas alegaram, provavelmente com verdade, a indisponibilidade de agenda. É preciso ver que muitas das pessoas que conviveram com Agustina já têm uma idade muito avançada e é complicado falar com elas. Apesar disso, consegui entrevistar mais de uma trintena de pessoas e, entre essas, algumas que privaram com Agustina e que não foram meros conhecimentos casuais.

Sobre a passagem pela direcção de O Primeiro de Janeiro e pelo Teatro D. Maria II, por exemplo, poderia ter falado com mais fontes. Considerou suficientes, aquelas citadas?
Sim, no caso da passagem pel’O Primeiro de Janeiro, tive ainda o privilégio de poder ter recolhido o testemunho de Costa Carvalho, que foi director-adjunto do jornal ao tempo em que Agustina foi a directora, e que, para além dessa relação profissional, teve com ela uma relação de grande proximidade e de grande amizade. Temos que ter a noção de que uma vida humana termina, mas uma biografia não termina nunca, e a lista de fontes, a lista de testemunhos é, se quisermos, interminável. É preciso aceitar que uma biografia nunca é definitiva em todos os sentidos e no caso de Agustina, com uma vida tão longa e tão preenchida, e que se dedicou a tantas frentes, ainda mais.

O que talvez distinga uma biografia de um romance…
Sim, embora os romances de Agustina, por exemplo, não terminem nunca. Ou por outra, dão a ideia de que ela decide pousar a esferográfica mas poderiam continuar.

São uma espécie de romance contínuo…
Ininterrupto, é verdade.

A determinada altura, há um desvio da estrutura cronológica inicial, passando a narração a desenvolver-se em torno de alguns núcleos temáticos: as viagens, os prémios recebidos, a relação com Oliveira. Porquê?
A estrutura do livro obedece a um arco narrativo que é globalmente cronológico. Há dois ou três capítulos temáticos, de facto, porventura no meio da biografia, que correspondem a isso que referiu, as viagens, os prémios, a relação com Manoel de Oliveira e depois, no final, retomamos o arco cronológico.

Acontece muitas vezes intrometer-se na narração a voz da biógrafa. Porquê? Que efeito pretendeu alcançar com essa estratégia?
Eu não diria que foi uma questão de estratégia. Foi, mais uma vez, uma opção de escrita e da qual – como da questão das frequentes remissões ao texto agustiniano – se gostará muito ou não. Diz-se muitas vezes que biografar é colocarmo-nos nos sapatos de alguém, e parece-me que é uma definição mais ou menos consensual e ajustada. Só que, ao colocarmo-nos nos sapatos de alguém, nós pomos lá os nossos próprios pés, digamos assim. Pareceu-me que seria muito difícil biografar Agustina ignorando que ainda tive o privilégio de a conhecer – não privei com ela, de forma nenhuma, mas tive ainda o privilégio de a conhecer –, ignorando, por exemplo, que a casa dos meus avós era muito perto de uma das casas em que ela morou no Porto, ignorando que, ao ir para a minha escola primária, passei muitas vezes nos mesmos sítios que ela descreveu. Parecia-me que omitir a minha presença seria, de alguma forma, falsear esta relação que tinha com ela. Foi apenas com esse intuito e foi uma opção que eu assumo e da qual se poderá gostar ou não.

O género biográfico tem sido pouco, eventualmente mal, cultivado em Portugal. Isso é evidente se nos confrontarmos com a tradição anglo-saxónica. Mas por que é que escasseia neste livro informação sobre certos aspectos da vida material, chamemos-lhe assim, que poderiam interessar à sociologia literária e da edição. Por que é não há, por exemplo, informações sobre contratos editoriais, tiragens, vendas, etc?
Ao construirmos uma narrativa biográfica, temos que seleccionar informação e isso, por muitos critérios objectivos que possamos estabelecer, é sempre uma avaliação subjectiva. Porventura, concentrei-me mais em aspectos relacionados com a construção da própria obra ou com o estabelecimento de relações com outros escritores. São opções de natureza metodológica, tal como houve outras. Um exemplo concreto: Agustina é uma figura pública, mas nem todos os que a cercam ou que se movimentaram em seu redor possuem o mesmo grau de celebridade; tive de usar de algum pudor na selecção da informação que iria apresentar, das histórias que iria contar, daquelas que iria reservar, e tudo isso é muito subjectivo. Tentar eliminar a subjectividade da construção de uma biografia é uma tarefa inglória.

Lê biografias, seja por razões académicas ou por outras? O género interessa-lhe?
Sim, interessa-me, e sou leitora de biografias. Falamos muitas vezes da tradição anglo-saxónica, mas o meu primeiro grande contacto com o género biográfico foi em França – ainda no âmbito da licenciatura, fui lá fazer Erasmus –, onde há também uma tradição biográfica. O meu primeiro contacto com o género biográfico em Portugal foi durante o meu mestrado em História da Cultura. Um dos seminários era sobre biografias devotas, que são relatos hagiográficos sobre figuras não canonizadas. Costumamos dizer que em Portugal há uma escassa tradição biográfica mas, em compensação, temos uma longa tradição hagiográfica e eu acho que essa tradição hagiográfica ainda tem muito peso entre nós. Não no sentido de as biografias de santos estarem na moda, mas no sentido em que parece que muita gente ainda espera que a biografia seja não só um relato definitivo e total, mas um panegírico do biografado, se possível aprovado, não pela Santa Inquisição, que felizmente já não existe, mas pela família do biografado. Devemos interrogar um livro sobretudo por aquilo que ele é e não por aquilo que ele poderia ser. Desde que o livro foi publicado, já descobri coisas novas sobre Agustina. Uma biografia nunca é definitiva e por isso é que me parece desejável e natural que surjam outras biografias de Agustina. Eu cá estarei para as ler todas, como grande admiradora que sou de Agustina.

Leu a biografia de Alexandre O’Neill escrita por Maria Antónia Oliveira e publicada em 2007 pela Dom Quixote?
Li, claro!

Há dois momentos no seu livro que lembram fortemente duas passagens de Alexandre O’Neill: Uma Biografia Literária. Na página 20 de O Poço e a Estrada lê-se: “E, recolhida toda a informação possível, cheguei à etapa da escrita deste livro com a certeza de que não poderia reconstituir-lhe a vida sem a reconstruir a partir da minha relação com a sua obra, sem a reconstruir a partir de mim. Seria ingénuo supor que uma biografia possa ser uma narrativa objetiva de factos. A verdade da vida de um biografado é sempre múltipla e contraditória […]. Se não assumir o seu lado quase ficcional, a tarefa do biógrafo arrisca-se a tornar-se um trabalho tão insulso como melancólico, repleto de atribulações e nunca acabado.” No livro de Maria Antónia Oliveira já se lia: “Recolhida toda a informação, cheguei ao momento da escrita com a certeza angustiada de que me faltava saber muito sobre ele […] e que nunca poderia reconstituir-lhe a vida, mas tão-só reconstruí-la, muito a partir de mim e da minha relação pessoal com o morto. Seria ingénuo pensar que uma biografia pode ser uma narrativa objectiva de factos. […] A verdade da vida do biografado é múltipla e contraditória. Se não assumir o seu lado quase ficcional, a tarefa do biógrafo arrisca-se a tornar-se um trabalho melancólico, cheio de tribulações e nunca acabado.” (pp.149-50) Na página 388 do seu livro lê-se: “Sei que é assim quando estamos muito doentes […]. A paisagem mais rutilante torna-se baça. O universo estreita-se. O simples ato de manter uma conversa torna-se um esforço […].” Na biografia de O’Neill pode ler-se: “Por mais que se lute contra ela, e se lhe vire intrepidamente as costas, a doença torna o mundo baço. […] O universo estreita-se, as possibilidades narrativas tornam-se escassas. O simples acto de manter uma conversa torna-se num esforço inútil.” (p. 272) O que é que se passou? Como é que isto se explica?
Sim, são citações semelhantes, enfim… A ideia de a verdade ser múltipla e contraditória é mais ou menos evidente… Mas eu li tanta coisa para a elaboração desta biografia que é provável que tenha havido… Sobre a doença, lembro-me perfeitamente de ter escrito essa reflexão com base numa experiência pessoal, uma doença grave por que passei. Provavelmente sentimos isso quando estamos doentes e não há assim tanta originalidade na nossa experiência pessoal. Não serão ideias propriamente originais, mas reconheço que na sua formulação são muito idênticas e o que pode ter acontecido foi que a dada altura li tanta coisa que pode ter havido essa contaminação. Não me parece que vá encontrar muitas mais…

Ter-se-á tratado, então, de uma citação inconsciente ou que, por lapso, não foi explicitada como tal?
Pois, uma citação involuntária ou uma paráfrase…

Eu não diria paráfrase mas, admitindo que o seja, não teria sido oportuno indexá-la à sua fonte aparente, como faz em tantos outros casos?
Sim, não haveria nenhuma razão objectiva e, enfim, perversa para que não o tivesse feito neste caso. Encaremos isso como uma falha involuntária, como eventualmente haverá outras, de diversa natureza, na biografia. Não pretendo que ela fuja à natureza humana que é, obviamente, falível.

Eu tento apenas perceber o que se terá passado…
Não lhe sei dar uma resposta. Provavelmente transcrevi mal, ou não referenciei que era citação, ou a ideia ficou-me gravada na memória… Obviamente, eu não tinha necessidade nenhuma de cometer um erro tão grosseiro, porque se há coisa que sou capaz de fazer é de colocar por escrito uma ideia mais ou menos básica, mais ou menos evidente.