A música de um corpo do século XXI chamado Leo Fazio

Sangue Pisado & A Música do Século XXI deixa-nos primeiro presos naquela voz granulada a rouquidão. Depois, chega catarse íntima e um sombrio presente. "Peguei nos cacos que estavam todos jogados no chão, reconstruí e renasci", diz Leo Fazio ao Ípsilon

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Ficamos primeiros presos naquela voz de gravidade inacreditável para voz que canta. Ficamos presos naquela voz granulada a rouquidão, na voz que é altiva e cansada, que é jovem e antiga e que pode ser bailarina em passos pesados e imponentes. Ficamos presos na voz que não samba exactamente como achamos que a bossa samba, enquanto ouvimos os ecos de um Dylan febril a transformar recortes de jornal velho em letra fulminante e enquanto apercebemos contornos da tropicália, mas uma tropicália onde o peso da vida na grande urbe cai sobre ombros cansados, uma que vê o crime lá fora e um buraco negro cá dentro do peito - e talvez o amor chegue para tudo salvar, mas nada disso é uma certeza absoluta. Não o é certamente aqui, em Sangue Pisado & A Música do Século XXI, o álbum que nos revela Leo Fazio.

Nada é uma certeza absoluta, dizíamos, e aqui não o é certamente o amor – “nos leve mais essa canção / a um passado onde houve uma solução”, canta a doçura possível de Serenata; “Querida, me arranhe / Me arranje, me assanhe / Me cheire, me ame antes que a vida desande / Antes que o mundo nos deixe”, ouve-se em Querida me arranhe & etc…. O presente são as incertezas e as angústias, são o mestre de capoeira morto na Bahia por ódio político (Do Katendé), a vendedeira do Mercado da Lapa com arma apontada ao rosto e que assobia uma melodia para salvar a vida (Crime), é a “rica, moça e bela” que se suicidou sem ninguém saber porquê (Sofia suicidou-se), é este peso da insatisfação, este absurdo que não nos abandona: “se eu não correr, não caio não / se eu correr, corri, mais nada / pois é só / correria”.

O presente, neste disco, é a cuíca que range um som que perturba em vez de gingar, a bateria que é samba em câmara de eco pós-punk, o violoncelo às voltas do violão, o clarinete a pontuar efeitos dramáticos no enredo. Tudo isso e, voltemos ao início, aquela voz de gravidade inacreditável para voz que canta: “E veja a glória que era sonhar / E perceba que não é moleza / Vai roubar tua mesa / Vai manter sua pobreza / Vai nutrir tua tristeza”. Bem-vindos a Leo Fazio, nascido em São Paulo, 26 anos, vocalista e guitarrista de uma muito interessante banda da cena independente paulista, os Molodoys, que agora se estreia a solo em longa-duração (disponível apenas em formato digital). Ele que diz ao Ípsilon: “Se não tivesse posto esta música para fora, e eu sei que é duro e pesado dizer isso, mas não sei se estaria vivo. Comecei a desenvolver este disco num momento em que estava muito perdido, sem vontade de fazer nada, fechado no quarto. Não via o fim do poço e com este processo consegui sair para outro lugar. Peguei nos cacos que estavam todos jogados no chão, reconstruí e renasci”.

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Bem-vindos a Leo Fazio, nascido em São Paulo, 26 anos, vocalista e guitarrista de uma muito interessante banda da cena independente paulista, os Molodoys, que agora se estreia a solo em longa-duração Matheus Miranda

Havia uma canção em Tropicaos, precisamente a que deu título ao álbum, em que os sons da cidade invadiam o ambiente musical lisérgico, sonho pintado de cores garridas com órgãos fervilhantes e percussões tropicalizadas. Tropicaos era um sonhar acordado que não partiu realmente – ouvem-se as buzinas, ouve-se o burburinho constante, a selva urbana é aqui e agora e não haverá psicadelismo a salvar-nos dele. Na verdade, nem é certo que fugir dele seja desejável. “Eu moro aqui, então, automaticamente, vou acabar falando sobre isto”. Isto de que fala Leo Fazio é a sua cidade, São Paulo, é o seu país, o Brasil, é o seu mundo interior a transpirar cá para fora. Aquilo de falamos com Leo Fazio não é os Molodoys, a banda que se estreou em 2014 cantando em inglês o seu rock psicadélico, a banda que gravou em 2016 o tal Tropicaos, sonho psicadélico já tropicalizado e (muito bem) vertido em português que foi elogiado com justiça pela lenda Sérgio Dias, vocalista e guitarrista d’Os Mutantes. Aquilo de que falamos com Leo Fazio é de outra natureza e de outra dimensão. Voltemos a Sangue Pisado & A Música do Século XXI, a sua estreia a solo em longa-duração.

Uma viagem e uma epifania

É dele o sangue, é nosso o século, é um assombro o disco. Assombro assombrado: “Estava tentando encontrar o meu som, explorar a música brasileira de um jeito diferente do que a gente costuma fazer”, diz Leo Fazio ao Ípsilon desde o outro lado do Atlântico, no início de mais uma tarde em São Paulo. “O que a gente ouve de bossa nova é música calma, serena, música sobre amor. Eu queria explorar um lado mais sombrio, mais pesado, mais real”. Este disco é sobre ele e sobre a procura cantada por Cartola em Preciso me encontrar. A referência ao mestre sambista não é, neste contexto, inocente. “A brasilidade foi algo que eu sempre busquei, mas não estava tanto nisso antes”, explica Leo Fazio. “Depois do primeiro disco de Molodoys é que comecei a entrar cada vez mais de cabeça, a ouvir Cartola, a ouvir Milton Nascimento, entrando mais, de uma forma natural”.

Sangue Pisado & A Música do Século XXI é sobre Leo a tactear, a sentir, a respirar o ar que o rodeia. Ar pesado. “Estamos passando uma situação bem difícil aqui [no Brasil]”, suspira. “Todo mundo está perdido, todo mundo está com medo do que vai ser. Não podia falar de mim sem falar disso”, reconhece. Este álbum não é a primeira edição a solo de Leo Fazio. Em Dezembro de 2017 editara Três por um Real, mas esse EP soa a passo tímido. Já este disco que editou em Janeiro mostra-se mergulho profundo, inteiro, numa criatividade verdadeiramente definida. Para que tal acontecesse, foi necessária uma viagem e uma descoberta com dimensão de epifania.

O título do álbum contém uma referência nada discreta a um espantoso disco esquecido da música brasileira. Em 1959, no mesmo ano em que João Gilberto erigia a bossa nova com Chega de Saudade, uma compositora de 23 anos chamada Jocy de Oliveira editava um álbum que era tanto uma outra bossa que alguns o classificam como o seu oposto - anti-bossa, não menos. Jocy de Oliveira seria depois precursora da música electrónica no Brasil, uma pianista e compositora audaz cujo caminho se cruzou com Luciano Berio, Stockhausen ou Stravinski.

A Música do Século XX de Jocy, o seu único disco de música popular urbana, é um estranho festim de criatividade, uma criação arrojada em que a bossa nova é decomposta e reconstruída, acolhendo no seu seio, por exemplo, experiências de gravação vanguardistas, extraídas da música concreta, e trazendo para o seu centro as exclamações e os crimes nas capas de jornais, chamas de incêndios, gritos de assaltos em plena rua, lado a lado com a placidez de um dia de Verão e desconstruções do imaginário sol-praia-violão. Não é por acaso que a canção que abre o álbum, Sofia suicidou-se, está também n’A Música do Século XXI de Leo Fazio. Jocy de Oliveira, ainda activa, hoje com 82 anos, foi para ele determinante. “Quando estava procurando a sonoridade do meu disco solo, me falaram ‘ouve esse disco’. Fiquei maravilhado. Quando ouvi Jocy de Oliveira, encontrei o que eu podia ser”. A Música do Século XX de Jocy foi a descoberta com dimensão de epifania. Para que nascesse Sangue Pisado & A Música do Século XXI, faltava ainda a viagem.

O convite chegou no fim de uma noite de boémia bem regada. Everton Surerus, que detém os estúdios Canil Recs em Juiz de Fora, Minas Gerais, dissera a Leo Fazio que aparecesse quando quisesse para gravar alguma música. Leo não sabia se o convite era coisa séria ou não. Mas foi. Seguiu viagem para ficar durante uma semana, ficou três meses. “Acho que saí de São Paulo para ter uma visão distanciada que permitisse, por estar sozinho e sem o caos daqui, estudar um pouco melhor a cidade e representá-la melhor”, reflecte. “Juiz de Fora ajudou a situar-me, a perceber o meu lugar aqui”.

Pouco a pouco, com os músicos convidados e com os instrumentos que, tocados por si, reuniu à mistura (violoncelo, clarinete, o erhu, um cordofone chinês, o bandolim ou a cuíca), Sangue Pisado & A Música do Século XXI nasceu como o ouvimos agora. Um álbum onde as melodias de Villa-Lobos e os sambas de Cartola são sacudidos pela descoberta de Jocy de Oliveira, e onde a realidade do hip hop dos Racionais MCs foi tão marcante, diz Leo, quanto as canções de Noel Rosa, de Cartola e Milton Nascimento. Onde o movimento antropofágico do modernismo brasileiro desagua em audições de King Krule, companhia recente, ou de Bob Dylan, companhia de sempre. “Na parte da lírica, Bob Dylan foi a maior influência”, diz Leo, e a dylanesca A Balada do Anjo de Barro não o deixa mentir. “Ele coloca as palavras como se fossem uma corrente, usando não só o seu significado, mas também a forma como encaixam foneticamente na música. Essa foi a maior influência que ele teve em mim, mas não é só ele a fazê-lo. O Chico Buarque também tem bastante isso”, aponta Leo Fazio.

Sangue Pisado & A Música do Século XXI é um álbum de digressão íntima e de procura de uma voz colectiva. “Quero entrar na música brasileira cada vez mais, quero falar do que eu passo, por onde ando, como me estou sentido agora. Gente desde o sul até ao norte, sem movimento coordenado, está buscando isso, tentando criar o seu próprio caminho, contando a nossa versão do que vivemos”.

É um álbum de uma cidade, São Paulo, e de um país, o Brasil. É o álbum de um homem e do que ele sentiu tocando as ruas e as pessoas em volta, do que ele descobriu mergulhando fundo em si mesmo. "Mas que porra engraçada/ A minha geração que se sente culpada/ Pela porra do lugar/ Que já existe há muito tempo/ Antes mesmo da estação da Luz/ E o viaduto do Chá" - palavras atiradas em golfadas no balanço do ritmo. "Mas que porra eu vou contar em minha chegada/ Em porra de lugar nenhum?/ No cemitério do Araçá/ Que é o meu lugar", diziam as palavras nos versos que vieram antes. "Mas que porra é essa, rapaz?/ Mas que porra é essa?", continua no balanço, e continua no balanço. Que porra é essa, então? É a música de um corpo do século XXI. Tem por nome Leo Fazio.