Política cultural de Inês de Medeiros sob chuva de críticas por causa da Casa da Juventude

Câmara assinou protocolo para instalar Paulo Ribeiro e criar Casa da Dança no espaço onde juventude almadense cresceu para as artes nos últimos 30 anos. Críticos dizem que Inês de Medeiros quer transformar Almada em Lisboa.

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NUNO FERREIRA SANTos

O acordo assinado em Fevereiro pelo município de Almada e o coreógrafo Paulo Ribeiro para a criação da Casa da Dança de Almada está a gerar polémica por estar prevista a instalação da nova estrutura na Casa da Juventude ‘Ponto de Encontro’, em Cacilhas, usada por uma dezena de grupos locais e berço da produção artística almadense há 30 anos. 

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O acordo assinado em Fevereiro pelo município de Almada e o coreógrafo Paulo Ribeiro para a criação da Casa da Dança de Almada está a gerar polémica por estar prevista a instalação da nova estrutura na Casa da Juventude ‘Ponto de Encontro’, em Cacilhas, usada por uma dezena de grupos locais e berço da produção artística almadense há 30 anos. 

O “protocolo de colaboração” com a Companhia Paulo Ribeiro fixa o pagamento de 120 mil euros, por parte do município, como apoio para a associação desenvolver o projecto “singular e inovador em Portugal” da Casa da Dança de Almada, que “passará a integrar a rede de projectos similares ao nível europeu”.

Segundo o documento, de oito páginas, o projecto apresentado pela companhia pretende ser um polo aglutinador”, para reforçar a “criatividade coreográfica” assim como a “emergência e afirmação de novos talentos”. A Casa da Dança de Almada será “um lugar que vai para toda a cidade”, de “todas as danças” e “todos os públicos”, que vai ter criar “pontes com os agentes e projectos residentes na cidade”.

O subsidio de 120 mil euros – 40 mil já pagos e os restantes em duas tranches em Julho e Setembro – servem para, neste primeiro ano, Paulo Ribeiro arrancar com a Casa da Dança, designadamente para “o desenvolvimento de linhas de programação e de modos de funcionamento, incluindo a formalização de parcerias tanto a nível local, nacional como internacional”, estando previsto o “tempo de implementação a partir do segundo ano de actividade”.

Ainda assim, o protocolo fixa também como obrigações para a associação fazer duas actuações com produções próprias para o município, apresentar duas co-produções com outras companhias de dança nacionais ou estrangeiras, promover parcerias e intercâmbios, entre outras.

Espaço da polémica

Para os críticos, não é o protocolo com Paulo Ribeiro - cujo mérito todos fazem questão de sublinhar - que está em causa mas sim o local escolhido pela autarquia para instalar o projecto: a Casa da Juventude, local icónico da cultura almadense onde ao longo de 30 anos milhares de jovens têm criado grupos locais e desenvolvido artes de todos os géneros.

Actualmente são cerca de uma dezena os grupos que usam o espaço para as mais variadas actividades artísticas, da música ao teatro, passando pela dança e até pelo desporto. Os actuais e antigos utilizadores do Ponto de Encontro receiam que a instalação do novo projecto retire espaço ao uso e espírito habitual da Casa da Juventude e que possa significar o princípio do fim do local.

Acresce que o edifício aguarda demolição, no âmbito do projecto imobiliário para o Ginjal que prevê a construção de novas instalações. A presidente da câmara disse até recentemente que está também em causa a segurança das pessoas. “Esses edifícios terão que ser demolidos, até porque estão na beira da arriba e estão em perigo. Mesmo sem o Plano Pormenor do Ginjal teriam de ser intervencionados”, disse Inês de Medeiros na Assembleia Municipal de Almada em Fevereiro do ano passado. No entanto, a câmara diz agora que não há perigo iminente.

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Nuno Ferreira Santos

O protocolo refere a cedência “do espaço denominado Ponto de Encontro, sito em Cacilhas”, mas a Câmara diz que vai ser cedida à Companhia Paulo Ribeiro apenas uma sala. No entanto, muitos almadenses não estão convencidos disso.

Margarida Botelho, arquitecta, ilustradora e autora, que se considera “uma das centenas de pessoas” cuja adolescência e formação artística está ligada ao emblemático espaço, explica porque não acredita que a companhia ocupe somente uma sala. “O discurso é uma não noticia, mas há um discurso oculto. A salinha não vai ser apenas uma salinha e a Associação Paulo Ribeiro vai acabar por usar as duas salas melhores”, diz.

Entre grupos de Facebook, idas a reuniões dos órgãos municipais e o lançamento de uma petição pública, a contestação está em cena. Na última reunião da Plataforma das Artes, criada em reacção à assinatura do protocolo, estiveram “mais de 30 pessoas”, sendo que muitas das que tem mostrado interesse “estão fora”, no país e até no estrangeiro.

A petição ‘Vamos devolver a Casa da Juventude à cidade de Almada’, que nesta sexta-feira tinha 561 assinaturas, diz que, ao ceder as instalações para outros fins, o município está a “retirar espaço” à “criatividade que nasce todos os dias”. Antigos e actuais frequentadores do Ponto do Encontro dizem-se preocupados com o futuro do espaço e o rumo da política cultural do município.

“As mudanças não são nada agradáveis e dão azo a muita preocupação dos elementos criativos da cidade”, diz Miguel Paulitus, um dos mais conhecidos de entre os antigos.
Igualmente “preocupado e a sofrer com isto” está Tiago Pereira, fundador do grupo de musica tradicional ‘Roncos do Diabo’, que também nasceu no Ponto de Encontro. A

Actualmente a viver na cidade da Guarda, o agente cultural defende a “importância extrema” da Casa da Juventude como “forma de proporcionar aos jovens o acesso a espaço de criação”. Tiago Pereira refere que “está ainda por fazer o estudo dos grupos que nasceram no espaço” e alerta para o “erro” em que Almada incorre se acabar com uma “incubadora de arte” que já tem e que outras cidades ainda não conseguiram.

O risco de alteração da política cultural e de juventude é apontado também por Miguel Paulitus. “Almada era a capital da cultura mais rebelde e está a ser descaracterizada”, atira.

Joana Casado, diz que “há uma agenda política cultural de que a comunidade artística de Almada está a ser testemunha” e que o plano de Inês de Medeiros passa por “transformar Almada em Lisboa”. 

“Estão a dar-se 120 mil euros a Paulo Ribeiro. Isto é inflacionar Almada, como se Almada até agora fosse um deserto onde não se passou nada”, afirma a actriz, de 20 anos, sublinhando que os contestatários não estão “contra o financiamento a Paulo Ribeiro mas sim contra o fim do apoio a associações locais”.

A actriz aponta também o que diz ser uma diferença na relação entre o município e a comunidade artística. “Em Almada sempre houve uma interlocução com a câmara muito directa, nas áreas da educação e cultura. Era fácil falar, com o vereador ou os serviços. As coisas aconteciam na trama social antes de irem para a comunicação social. Agora o processo é outro. O executivo anuncia as coisas na comunicação social. Nenhuma das estruturas que estão a usar a Casa da Juventude soube antes de ler a notícia sobre o protocolo.”

Os críticos receiam que seja o fim da história para o Ponto de Encontro. “Oficialmente não é a morte, mas é a morte lenta, o envenenamento lento. Hoje é um grupo que não tem sala para ensaiar, amanhã é outro, depois não há apoio, e vai morrendo”, afirma Margarida Botelho. Joana Casado, do grupo de teatro Cena Múltipla, estende o receio de morte a outros espaços da cultura almadense.

Haverá complementaridade

A Câmara de Almada assegura que a actividade da Casa da Juventude e a programação Ponto de Encontro não serão prejudicadas com o acolhimento do projecto Casa da Dança, de Paulo Ribeiro, prometendo uma gestão do espaço em “complementaridade” para “não haver sobreposição”.

“O uso actual da Casa da Juventude não sofrerá qualquer descontinuidade da actividade programada, havendo pequenas necessidades de ajustamentos pontuais, que decorreriam igualmente de utilização do espaço por qualquer outra entidade”, afirma a autarquia em respostas por escrito ao PÚBLICO.

A mesma fonte explica que, “inicialmente, o projecto Casa da Dança irá utilizar o espaço numa vertente meramente administrativa porquanto a necessidade de ajustamento de utilização só acontecerá muito posteriormente aquando da necessidade de proceder a ensaios com vista ao acolhimento e ensaio de companhias internacionais”. E acrescenta que “o uso do espaço como sede de trabalho administrativo decorre em horário laboral, sendo que o grosso da programação ocorre em horário não coincidente”.

“O coreógrafo Paulo Ribeiro irá utilizar a Sala Estúdio, como sede de trabalho administrativo numa primeira fase de implementação. Por outro, lado, havendo necessidade de proceder a ensaios para preparação de espectáculos e acolhimentos de companhias internacionais, prevê-se a possibilidade de uso das outras duas salas para ensaios, mas sempre em consonância com a programação normal.”, acrescenta.

De acordo com o município, a Casa da Juventude não vai deixar de ser de Almada e a realização de actividades neste espaço vai manter-se, decorrendo “do simples preenchimento de formulário próprio” e de acordo com os critérios para todas as casas municipais da Juventude do concelho - “a disponibilidade dos espaços, a natureza da entidade e a relevância das actividades propostas para prossecução dos objectivos e competências da Divisão de Juventude”.

Sobre a demolição do edifício e a construção de uma nova Casa da Juventude, prevista no âmbito do projecto imobiliário para o Ginjal, a Câmara de Almada esclarece que o Plano de Pormenor do Cais do Ginjal “encontra-se em fase de conclusão”, pelo que “estão a ser trabalhados aspectos associados a esse instrumento de gestão territorial e à respectiva execução futura”. Não está ainda “prevista qualquer data” para a demolição, mas a autarquia dá a “certeza que será substituída por equipamento equivalente” e refere que nessa altura haverá necessidade de realocar todos os projectos” existentes no Ponto de Encontro. Até lá, diz o município, será “acompanhada a evolução da superfície escarpada” do Ginjal para garantir a segurança das instalações construídas no topo da escarpa. “O último parecer obtido, do Departamento de Obras Municipais, em Julho de 2018, indicava que não existia perigo para as fundações do edifício”, afirma a nota da câmara.

Noticia alterada a 7/2/2019: Joana Casado retira declarações sobre situação do Teatro Extremo.