Inês Pedrosa: o retrato de um país que olha para si de maneira esquizoide

Inês Pedrosa continua a esboçar o retrato de um país que olha para si de maneira esquizoide, qualquer que seja a década para a qual se aponta a lupa.

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Um olhar sem complacência sobre um Portugal festivo no final da década de 1980: O Processo Violeta NUNO FERREIRA SANTOS

Depois de em Desamparo (2015) — provavelmente o melhor romance de Inês Pedrosa (Coimbra, 1962) — a autora ter feito uma espécie de radiografia de um Portugal em profunda crise, o retrato de um país com várias crises e em que ao mesmo tempo esboçava uma geografia afectiva onde se cruzavam várias histórias de emigrações e imigrações, regressa ao romance com o mesmo olhar sem complacência, agora sobre um Portugal festivo no final da década de 1980.

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Depois de em Desamparo (2015) — provavelmente o melhor romance de Inês Pedrosa (Coimbra, 1962) — a autora ter feito uma espécie de radiografia de um Portugal em profunda crise, o retrato de um país com várias crises e em que ao mesmo tempo esboçava uma geografia afectiva onde se cruzavam várias histórias de emigrações e imigrações, regressa ao romance com o mesmo olhar sem complacência, agora sobre um Portugal festivo no final da década de 1980.

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De forma breve: em O Processo Violeta conta-se a história de uma professora do ensino secundário, Violeta — trinta e dois anos, “uma figura saída dos livros de Jane Austen”, que se orienta “pelo bom senso, pelo bom gosto, pelos tons pastel”, católica, casada, mãe de gémeos — que se apaixona e engravida de um aluno de catorze anos, Ildo, filho de mãe solteira cabo-verdiana e de um cavaleiro tauromáquico, aristocrata e marialva. “Era o único aluno de que ela falava. Tinha necessidade de falar dele”. Pelo meio surge Ana Lúcia, também professora, que foi violada por um outro aluno da mesma escola (identidade que esconde da amiga Violeta); entre outras personagens, surge ainda Clarisse Garcia, jovem jornalista do recém-criado semanário “O Insubmisso”, jornal atento a possibilidades de escândalos, sobretudo se envolverem figuras das elites (o que acontece com o cavaleiro Conde da Delgada, pai de Ildo).

Corre o ano de 1987 e é clara a alusão feita ao jornal “O Independente”, com um retrato, por vezes acutilante do meio jornalístico da época, com todas as suas personagens lá retratadas nos seus tiques e ideias; até Marcelo Rebelo de Sousa, na altura no Expresso, por lá surge a dizer: “Chamo-me Marcelo e percebo alguma coisa de jornais”. Inês Pedrosa serve-se do semanário também para descrever uma elite em ascensão — ou elites, quer política, social ou económica — ao mesmo tempo que mede o pulso a uma sociedade que recebe esta “nova” forma de fazer jornalismo em Portugal nesse final de década: “O humor começava a vender mais do que as notícias ou o aprofundamento dos temas. As pessoas preferiam rir-se a pensar em problemas que não se sentiam aptas a enfrentar e que, de qualquer forma, não poderiam resolver.”

A forma do romance suporta quase tudo, é sabido; até capítulos que aparentemente nada têm a ver com a história que está a ser contada. E isso é notório, pelo menos de maneira óbvia, na mais recente literatura em língua castelhana, e refiro dois exemplos recentes: Irmão de Gelo, de Alicia Kopf, e O Nervo Ótico, de María Gainza. Os capítulos narrativos são intercalados por outros com material diverso, desde notas de biografias, apontamentos de História, divagações sobre arte… E é isso que Inês Pedrosa faz também (de maneira menos concentrada) neste romance. Mas se os capítulos dedicados à idade dos reis, à vida íntima das rainhas, e outros assuntos parecem fazer sentido, o capítulo que abre o livro parece quase inconcebível para quem já escreveu tantos romances como a autora: uma divagação despropositada sobre Eros e Psique, com passagens por Freud e a psicanálise, que para além de nada acrescentar parece ter um tom justificativo daquilo que não precisa de justificação. O pior é que a autora parece ter consciência disso ao escrever (em tom onde não se nota ironia alguma): “O leitor compreenderá a ligação entre os factos e o mito, se dispuser de paciência para ler este romance e se pertencer a essa fina-flor de almas sábias que encontram na hipérbole da ficção uma verdade mais cirúrgica do que a fornecida pela científica dieta dos documentos.”

Passado o capítulo inicial e tendo agora o leitor demonstrado a devida paciência e se ter considerado pertencer à “fina-flor de almas sábias”, poderá prosseguir a leitura, e o que encontra vai ser melhor do que aquilo que acabou de ler.

Inês Pedrosa retrata neste romance aquele momento (que se prolongou muitos anos no tempo, mais de uma década) em que Portugal parecia (se é que não continua ainda a parecer) viver de uma maneira esquizóide os valores morais e os preconceitos sociais, e também os modos de ascensão e afirmação social: Portugal continuava um país “familiar e ecológico, onde veias, artérias e árvores genealógicas substituíam os currículos”. Pelo meio há também algumas situações quase risíveis e menos conseguidas: como aquela em que as duas amigas se encontram, após a violação de Ana Lúcia, e Violeta lhe diz para ler uns contos do Eça, pois “o Eça descontrai sempre”.