Geografia de afectos

Desamparo, o melhor romance de Inês Pedrosa, é o retrato sem complacências de um país com várias crises

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Uma escrita mais despojada do que a usada em romances anteriores tece uma rede a partir de sentimentos de traição Rui Gaudêncio

Mais de meio século depois, uma mulher regressa do Brasil à aldeia de Arrifes, de onde foi levada do colo da mãe com três anos de idade.

Jacinta volta para o “abraço da minha mãe fechou uma chaga antiga”. Mas no Brasil deixou os três filhos, que continua a não ver muitos anos depois de voltar a Portugal. Um dia sofre uma queda que a atira para a cama de um centro. “Onde estou? Que quarto é este, cheio de camas e de cortinas sem cor? Quem é este rapagão me abraçando? Quem são estas velhas deitadas em camas, uma de cada lado? Que cheiro horrível a lixívia e álcool. Porque não consigo perguntar? Porque não consigo entender o que me dizem? Porque insistem em vestir-me esta bata horrível? Sou modista, uma mulher sofisticada.” É a saga que foi a vida desta mulher o eixo em redor do qual giram as várias histórias e personagens do mais recente romance de Inês Pedrosa (n. 1962).

Os narradores são vários, alternando ao longo do romance de maneira a desenvolver o retrato sem complacências de um país em crise económica (e talvez outras) que Inês Pedrosa se propôs escrever, tendo como principal pano de fundo um lugar rural imaginário. “Portugal visto dali é uma paisagem medieval com água potável e confortos modernos.” É a partir desta aldeia, ou nesta aldeia, que as histórias se cruzam, e são várias, chegadas de outros lugares em Portugal e no Brasil. Espalha-se por todo o romance um incomodativo “silêncio em bruto”, o mesmo que parece encher a aldeia onde “nem os cães ladram debaixo da canícula” e onde até os “pássaros desistiram de voar”. Pedrosa vai construindo ao longo do livro uma espécie de geografia afectiva onde se cruzam histórias de emigrações e imigrações ao longo das ultimas décadas, do Rio de Janeiro a Lisboa, e que acabam por confluir na aldeia de Arrifes.

Com uma escrita mais despojada, menos lírica e sem ademanes, do que a usada em romances anteriores, Pedrosa vai tecendo uma rede a partir de sentimentos de traição, de medos interiorizados, de ciúmes quase doentios, de violência conjugal (física e psicológica), de amizade e de morte. São histórias de “vítimas consentidas” as que se vão cruzando nesta espécie de radiografia de um Portugal em profunda crise, onde “a ideia de democracia se apagara do rosto da política para se tornar uma máscara no topo de um corpo dançante dos mercados, omnívoro, ubíquo e assustador”. Um país onde cada um parece existir por conta própria mas sempre muito dependente da opinião dos outros. Um país rural que parece dar uma espécie de imunidade à humilhação “possibilitada pela ausência de cosmopolitismo”, e onde “a rudeza da descrença substituía os veludos urbanos da hipocrisia”. Pedrosa não se limita a contar uma história, mas também a interrogar ou a provocar o leitor com aforismos que pontuam o tom geral da narrativa. Com as devidas distâncias, percepciona-se na escrita de Inês Pedrosa a sombra tutelar de Agustina Bessa-Luís. Em Desamparo, a autora interroga-nos e reflecte sobre um conjunto de valores da nossa contemporaneidade. Este é um romance em que todas as personagens se buscam, e em que ao mesmo tempo procuram definir os seus espaços identitários, descobrindo novos valores (ou procurando entender os antigos). Esta busca de identidade é feita a par de uma tentativa de redefinir pontos de orientação para as suas vidas, de acender faróis na longínqua praia dos afectos ao largo da qual navegam à bolina, isto muito à semelhança do romance anterior. São personagens desenraizadas no mundo que lhes calhou. “Culpado como eu de ter duas pátrias e não encontrar compatriotas em nenhuma. Culpado de estar pobre, num país de pobres, e com o sotaque errado.”

Admirável é o controlo da linguagem “brasileira” da personagem principal, que se articula sem choques com a dos restantes narradores. Sem forçar muito, Desamparo — que é provavelmente o melhor romance da autora — poderia ser lido como uma espécie de metáfora de um país em que a crise veio deixar à vista as muitas cicatrizes de vidas que se foram vivendo numa espécie de abandono existencial e cujo rumo foi sempre uma miragem.

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