A Marilyn desaparecida é reencontrada e Redford continua a desaparecer

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Marilyn Monroe

Tem havido um protocolo, em Quando Tudo está Perdido (2013), em Nós ao Anoitecer (2017) e reiterado em O Cavalheiro com Arma, de suspender a ficção com a atenção dada à mecânica do corpo que entrou em campo: Robert Redford.

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Tem havido um protocolo, em Quando Tudo está Perdido (2013), em Nós ao Anoitecer (2017) e reiterado em O Cavalheiro com Arma, de suspender a ficção com a atenção dada à mecânica do corpo que entrou em campo: Robert Redford.

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Uma das coisas bonitas de The Old Man and the Gun (título original do filme de David Lowerey que está nas salas) é não escamotear que está ali um património em vias de desaparecimento e fazer com isso outra história para além daquela, verídica, dos assaltos e fugas da personagem Forrest Tucker. O desaparecimento, a extinção, sempre foi narrativa de Redford. Em tons mais sombrios ou elegantes — veja-se Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969). É nesta mitologia do fora-da-lei sem tempo que O Cavaleiro com Arma ancora. De um filme sobre gestos quiméricos em que um ladrão persegue uma utopia e é perseguido por um polícia (Casey Affleck) que o deixa escapar como a uma fantasia, uma das histórias que silenciosamente conta, como uma pantomima, talvez seja a de um desejo de dupla sempre impossível de concretizar. A solidão não pode já ser partilhada. Redford/Affleck nunca será Redford/Newman.

O último mergulho de Marilyn Monroe aconteceu no plateau de Something’s Got to Give, de George Cukor. Despiu o roupão... e não havia nada sobre a pele. Mas havia fotógrafos. Dias depois, devido ao nível reduzido de comparência em estúdio, a uma viagem a Nova Iorque para cantar os parabéns a JFK no Madison Square Garden que enfureceu os estúdios e a uma presença nas rushes considerada “errática”, foi despedida pela Fox. Ficou o nu triunfal, fotografias que cumpriram o objectivo de uma mestre na manipulação para tirar das manchetes Elizabeth Taylor que em Roma dava cabo do dinheiro da Fox no Cleópatra de Mankiewicz. O studio system agonizava e Marilyn estava no fim: suicidar-se-ia meses depois, quando a Fox planeava readmiti-la. Remake de My Favourite Wife (1940), de Garson Kanin, história de uma mulher desaparecida nos mares do Sul que regressava a casa onde os filhos já não a reconheciam e o marido (Dean Martin) se casara de novo (com Cyd Charisse), ficaria como testemunho do fim de um tempo e de uma vida. O esplendor físico, irreal, rimava com destruição mental — como se Monroe não pertencesse já ao mundo. O material filmado esteve décadas arrumado a um canto, como se fosse tóxico, até que os cerca de 30 minutos de alinhamento de cenas, e ainda provas de guarda-roupa, começaram a ser (re)descobertos. Esse filme interrompido é um projecto para a imaginação no dia 19, 21h30, no Palácio de Estoi (Faro). Eis o ideário que se desenrola com o programa Video Lucem, do Cineclube de Faro: revelar (em alguns casos com a colaboração de músicos) a potência de filmes perdidos, do que (neles) ficou por dizer. No caso de Something’s got to give, mais do que avistar o filme que poderia ter sido, a pergunta é: que actriz seria ainda possível? A Marilyn “errática”, ou assim vista no estertor de Hollywood, revela hoje uma descontracção no habitat de desagregação que pode ser sentida como moderna. O que acrescenta surpresas ao diálogo com a vedeta “clássica”. E se...? Como uma transição que ficou por cumprir...