Se os oceanos ficarem mais quentes e ácidos, o bacalhau irá tornar-se um refugiado climático

Cientistas da Alemanha e Noruega criaram três cenários para saber como o bacalhau reagirá às alterações climáticas. Para que não mude a sua casa mais para norte, temos de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa – problema que começou no domingo a ser discutido na conferência da ONU sobre alterações, este ano na Polónia.

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Cozinhado de infinitas formas, o bacalhau é um hábito em muitas mesas portuguesas. Mas, devido à pesca excessiva, poluição e ao aquecimento global, tem vindo a ficar cada vez mais vulnerável. Preocupados (sobretudo) com as consequências das alterações climáticas no bacalhau-do-atlântico – o que se consome mais em Portugal – e no bacalhau-do-árctico, cientistas da Alemanha e Noruega criaram cenários sobre o que lhes acontecerá caso as emissões de gases com efeito de estufa continuem a subir. Os resultados não deixam dúvidas: caso essas emissões continuem a aumentar, as populações de bacalhau poderão diminuir e mudar o seu habitat mais para norte. Ou seja, podem tornar-se refugiados climáticos, como ilustra esta equipa de cientistas.

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Cozinhado de infinitas formas, o bacalhau é um hábito em muitas mesas portuguesas. Mas, devido à pesca excessiva, poluição e ao aquecimento global, tem vindo a ficar cada vez mais vulnerável. Preocupados (sobretudo) com as consequências das alterações climáticas no bacalhau-do-atlântico – o que se consome mais em Portugal – e no bacalhau-do-árctico, cientistas da Alemanha e Noruega criaram cenários sobre o que lhes acontecerá caso as emissões de gases com efeito de estufa continuem a subir. Os resultados não deixam dúvidas: caso essas emissões continuem a aumentar, as populações de bacalhau poderão diminuir e mudar o seu habitat mais para norte. Ou seja, podem tornar-se refugiados climáticos, como ilustra esta equipa de cientistas.

Viajemos até às águas do Atlântico Norte e do Árctico. Nelas encontramos o bacalhau-do-atlântico (Gadus morhua) e o bacalhau-do-árctico (Boreogadus saida). Ambos gostam de águas bem frias durante a sua reprodução: o bacalhau-do-árctico reproduz-se em águas entre os zero e os 1,5 graus Celsius, já o bacalhau-do-atlântico prefere águas um pouco mais quentes (mesmo assim muito frias para nós) entre os três e os sete graus Celsius.

Como gostam de águas tão geladas, estas espécies ficam vulneráveis às alterações climáticas, que podem tornar as águas do Atlântico Norte e do Árctico mais quentes como resultado da emissão de gases com efeito de estufa. Há ainda o problema da acidificação dos oceanos: quanto mais dióxido de carbono (CO2) houver na atmosfera, mais dióxido de carbono se dissolve nos oceanos. Simplificando: o CO2 e a água ligam-se e formam ácido carbónico, o que acidifica os oceanos.

“Isto significa que o bacalhau-do-atlântico e o bacalhau-do-árctico poderão ter um stress duplo no futuro: o seu habitat ficará simultaneamente mais quente e mais ácido”, aponta Flemming Dahlke, ecólogo marinho do Instituto Alfred Wegener (Alemanha) e autor do trabalho publicado na revista científica Science Advances, num comunicado da sua instituição.

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Cientistas a capturarem bacalhau adulto para as experiências Kristina Bär/Instituto Alfred Wegener

Ovos mais vulneráveis

Foi com estas preocupações que Flemming Dahlke e a sua equipa iniciaram uma investigação para saber quais as consequências das alterações climáticas nessas duas espécies. Para isso, fizeram experiências com ovos do bacalhau-do-atlântico e do bacalhau-do-árctico. Primeiro, apanharam peixes já adultos no mar de Barents e transportaram-nos para instalações no Norte da Noruega. Através deles, tentarem perceber como o bacalhau reage à acidificação e ao aumento da temperatura dos oceanos.

E porquê fazer esta experiência durante o desenvolvimento embrionário? Porque nesta fase o bacalhau está particularmente sensível à mudança das condições ambientais. Por exemplo, o bacalhau-do-atlântico adulto aguenta temperaturas dentro dos 20 graus Celsius, enquanto os seus ovos só suportam temperaturas por volta dos três graus Celsius. Já o bacalhau-do-árctico adulto tolera três graus Celsius, mas os seus ovos ficam-se pelos zero e os 1,5 graus.

Voltemos à experiência. Os cientistas observaram como os ovos de bacalhau são sensíveis: um pequeno aumento na temperatura pode provocar a morte de ovos ou causar deformações nas larvas. A situação ainda é mais preocupante quando a água é ácida. Se a água tiver um nível de pH de 7,7 (mesmo quando as temperaturas são mais baixas), o número de embriões que não sobrevive aumenta entre 20% e 30%.

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Embriões de bacalhau-do-atlântico com um milímetro e meio de diâmetro Instituto Alfred Wegener/Flemming Dahlke

Mas a experiência não terminou aqui. A equipa criou três cenários climáticos para prever como é que os ovos de bacalhau sobreviverão nos oceanos em 2100. No cenário mais gravoso (RCP8.5) não haverá uma redução de gases com efeito de estufa até ao final do século. Por sua vez, no cenário intermédio (RCP4.5) existirá uma ligeira redução desses gases. Já num cenário menos gravoso (RCP2.6) os gases com efeito de estufa serão fortemente reduzidos.

“No cenário mais gravoso, ambas as espécies serão muito afectadas porque o aquecimento e acidificação dos oceanos excederão os limites de tolerância dos ovos. As espécies não se poderão reproduzir mais nos sítios onde agora habitualmente o fazem”, diz ao PÚBLICO Flemming Dahlke. “Estas espécies serão forçadas a movimentarem-se para regiões mais frias, o que será difícil para o bacalhau-do-árctico porque prefere temperaturas à volta dos zero graus Celsius.”

Paris em Katovice

Relativamente ao cenário intermédio, os impactos no bacalhau-do-atlântico poderão ser minimizados, mas o bacalhau-do-árctico continuará em perigo. As duas espécies só ficarão a salvo no cenário menos gravoso, ou seja, se a temperatura média global não ultrapassar os 1,5 graus Celsius em relação ao período pré-industrial e até ao final do século (tal como apontado no relatório divulgado em Outubro do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) e ficar bem abaixo dos dois graus Celsius (como sugerido no Acordo de Paris de 2015, durante a 21ª Conferência das Partes, COP21, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas).

A propósito, começou no último domingo e termina a 14 de Dezembro a COP24 em Katovice, na Polónia. As novas tecnologias favoráveis ao clima, a população humana como factor de mudança, o papel da floresta e a adopção de uma decisão que garanta a plena execução do Acordo de Paris são alguns dos assuntos em cima da mesa. “O pacote de implementação dará ao Acordo de Paris uma forma realista, definindo um caminho que cada país decidirá seguir para intensificar os esforços para proteger o clima. Para simplificar, não há Acordo de Paris sem Katovice”, diz a organização da conferência citada pela agência Lusa.

Na parte final da conferência, Portugal estará representado pelo ministro do Ambiente e da Transição Energética, João Pedro Matos Fernandes. Ao longo da iniciativa também participarão especialistas e ambientalistas portugueses. A indústria, os transportes, os oceanos, as zonas costeiras energia, uso da terra, finanças, consumo responsável, inovação, desporto ao turismo são alguns dos temas que estes especialistas discutirão. Temas que – por estarem relacionados com as alterações climáticas – terão influência na situação do habitat e reprodução do bacalhau.

Proteger o habitat

“A tolerância reduzida dos ovos representa um problema crítico para a reprodução do bacalhau-do-atlântico e do bacalhau-do-árctico quando estão sob influência das alterações climáticas”, alerta Flemming Dahlke. “Se as alterações climáticas não forem combatidas, a probabilidade de sobrevivência dos ovos destas espécies poderá reduzir-se em mais de 50%, levando possivelmente a mudanças na distribuição e abundância [das suas populações]. Mas uma ambiciosa redução dos efeitos das alterações climáticas poderá evitar impactos perigosos nestas importantes espécies.”

Portanto, o bacalhau tem um desafio fulcral: encontrar águas com uma temperatura que lhe permita desenvolver os seus ovos. Actualmente, o bacalhau-do-atlântico reproduz-se perto do arquipélago de Lofoten, no Noroeste da Noruega. Depois, as correntes dão uma ajudinha e levam os ovos e as larvas mais para norte, onde há condições de vida ideais para o seu desenvolvimento.

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Bacalhau-do-atlântico Felix Mark/Instituto Alfred Wegener

“Se as populações de bacalhau-do-atlântico e as suas zonas de reprodução mudarem no futuro mais para nordeste, este peixe irá reproduzir-se, muito provavelmente, num sistema de correntes completamente diferente”, prevê o ecólogo marinho. “Isso pode acontecer, mas ainda não podemos avaliar esses efeitos.”

Ao longo dos tempos, o bacalhau tem tido uma importância determinante. O bacalhau-do-árctico é o peixe mais abundante no Árctico e é um recurso alimentar essencial para aves, focas e baleias. Já o bacalhau-do-atlântico tem um elevado valor comercial e, em cada ano, são capturadas um milhão de toneladas.

Aliás, uma descrição da pesca (e importância para os portugueses) deste peixe foi feita por Alan Villiers, especialista em assuntos náuticos, no livro A Campanha do Argus. “Já só temos isco para mais um dia – disse o capitão Adolfo, fixando o Creoula, ancorado perto de nós. Finalmente, fazia bom tempo e havia bacalhau com fartura”, lê-se numa edição de 2014 da Cavalo de Ferro.

Para que o bacalhau não se torne um refugiado climático – além de reduzirmos as emissões de gases com efeito de estufa –, Flemming Dahlke aponta que se deve fazer uma gestão sustentável das pescas para se evitar assim uma pesca excessiva. “Devemos ainda proteger potenciais habitats de refúgio no Árctico da exploração de petróleo e de outras formas de intervenção humana”, avisa o ecólogo antes que seja demasiado tarde.