As transformações operadas pelo teatro no Prémio Europa

Por estes dias, alguns dos mais importantes criadores teatrais europeus são distinguidos e apresentam a sua obra em São Petersburgo. No arranque, Lev Dodin falou da missão do teatro como aprendizagem da compaixão.

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Lev Dodin nasceu para o teatro quando, aos 15 anos, assistiu à encenação de A Tempestade, de William Shakespeare, pelo inglês Peter Brook. Foi a primeira prova concreta que teve – e que lhe ficou gravada na pele – de que os grandes encenadores podem transformar as vidas à sua volta. No caso de Dodin, cada uma das peças dirigidas por Brook a que assistiu voltou a baralhar as suas certezas sobre o teatro e a obrigá-lo a questionar o seu olhar sobre o mundo. “Como o seu teatro muda a toda a hora”, disse esta quarta-feira à assistência que enchia a sala da Dom Aktera (Casa do Actor), em São Petersburgo, que presenciava a sua conferência enquanto um dos vencedores do 15.º Prémio Europa de Teatro – Realidades Teatrais, “por vezes preciso de algum tempo para acertar o passo com as peças de Peter Brook, mas acaba sempre por me encantar e transformar.” A par do encenador russo, desde 1983 à frente do Maly Drama Theater, que Brook elogia como “a melhor companhia teatral europeia”, o Prémio Europa de Teatro distingue este ano Sidi Larbi Cherkaoui, Circus Cirkor, Julien Gosselin, Milo Rau, Andrey Moguchy, Valery Fokin, Nuria Espert e Tiago Rodrigues.

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Lev Dodin nasceu para o teatro quando, aos 15 anos, assistiu à encenação de A Tempestade, de William Shakespeare, pelo inglês Peter Brook. Foi a primeira prova concreta que teve – e que lhe ficou gravada na pele – de que os grandes encenadores podem transformar as vidas à sua volta. No caso de Dodin, cada uma das peças dirigidas por Brook a que assistiu voltou a baralhar as suas certezas sobre o teatro e a obrigá-lo a questionar o seu olhar sobre o mundo. “Como o seu teatro muda a toda a hora”, disse esta quarta-feira à assistência que enchia a sala da Dom Aktera (Casa do Actor), em São Petersburgo, que presenciava a sua conferência enquanto um dos vencedores do 15.º Prémio Europa de Teatro – Realidades Teatrais, “por vezes preciso de algum tempo para acertar o passo com as peças de Peter Brook, mas acaba sempre por me encantar e transformar.” A par do encenador russo, desde 1983 à frente do Maly Drama Theater, que Brook elogia como “a melhor companhia teatral europeia”, o Prémio Europa de Teatro distingue este ano Sidi Larbi Cherkaoui, Circus Cirkor, Julien Gosselin, Milo Rau, Andrey Moguchy, Valery Fokin, Nuria Espert e Tiago Rodrigues.

Para alguém que se diz “firmemente convencido de que a grande missão do teatro”, no caso de existir alguma, “é a de ensinar a compaixão e a capacidade de sentir empatia pelo outro”, nunca o mundo esteve tão necessitado dos palcos. Porque, precisamente, Dodin acredita que a (falta de) compaixão se tornou um verdadeiro problema planetário e um bem de escassez absoluta nos tempos que correm. Na sua opinião, as pessoas deixaram de exercitar essa tentativa, mesmo que momentânea, de se transportar para corpos e pensamentos alheios, abdicaram de treinar o gesto virtual de assaltar por momentos a alma dos outros enquanto gesto essencial para perceberem o quanto é espelhado nesse movimento, encurtando drasticamente distância. Talvez por isso, Dodin, um dos maiores encenadores russos em actividade, comece por confessar-se pessimista: “A sociedade está a deixar de gostar de nós e o teatro está a tornar-se cada vez menos popular.”

Confesso herdeiro de Peter Brook, Lev Dodin afirma-se desconfortável e desconfiado do “teatro moderno”, que o confunde naquilo que considera ser a soberba dos autores em relação às suas personagens. Com Dostoievski e Shakespeare, disse ainda, aprendemos a “ter de crescer para sermos dignos de qualquer pequeno papel”. “Dostoievski não humilha as suas personagens, ele está presente em cada uma delas.” E Dodin tem-nas perscrutado até ao osso, através de peças como The Possessed (1994), cujas sete horas e meia de duração não foram obstáculo para que sobre ela chovessem os mais rasgados elogios quanto viajou para lá do território russo e conquistou a Europa.

Se Dostoievksi está em todas as suas personagens, também Dodin garante que, egoisticamente, os seus espectáculos são acima de tudo acerca de si mesmo, através da dimensão compassiva de que fala – procurando e descobrindo-se em cada vida que desperta em palco. De tal forma que, admite, não se importaria de se dedicar a eternos ensaios dos dois autores que cita, para não deixar de habitar em permanência esses textos e essas personagens.

Percebe-se, portanto, que a escolha para o programa oficial do Prémio Europeu de Teatro tenha recaído sobre a sua versão de Hamlet, apresentada terça-feira no Maly Drama Theatre. Uma versão escorreita, emagrecida para duas horas, colocando o motor de vingança do príncipe dinamarquês a carburar sobre um cemitério de valas abertas, à espera que os corpos nelas vão caindo para logo depois serem cobertos. Como se a marcha imparável da História engolisse todas as histórias de crueldade e vingança, logo as triturando para não mais as lembrarmos, caminhando depois sobre elas. Ainda que, confessa à sua audiência, veja no príncipe Hamlet o humanismo que sempre procura no teatro: o homem que, movido pela vingança do assassínio do seu pai, se dedica a varrer as figuras “do mal” que continuam o seu mundo.

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Hamlet Maly Drama Theatre

Liberdade e tolerância

Questionado repetidas vezes sobre o teatro pós-dramático, numa insistência que pretendia obter de Lev Dodin uma condenação, havia de manifestar pouca empatia pela obra fundamental do investigador alemão Hans-Thies Lehmann, Teatro Pós-Dramático, que na mesma sala da Dom Aktera recebeu, horas antes, o Prémio Thalia. Lehmann foi alvo da grande ovação na manhã de quarta-feira, com programação a cargo da Associação Internacional de Críticos de Teatro, focada na liberdade e (in)tolerância nas artes performativas.

E aqui, com várias intervenções vindas de outras tantas geografias, não demorou a perceber-se o quanto a produção teatral em países asiáticos como Hong Kong ou Japão incide, com frequência, em narrativas relacionadas com as limitações à liberdade de imprensa, com muitos autores – Candace Chong Mui Ngam, com Wild Boar foi um dos exemplos – a passarem para o palco denúncias das manipulações constantes da informação, da dificuldade de manter uma ética impoluta no jornalismo, da relação com uma censura constante e da luta continuada com hierarquias ao serviço do poder político.

Desafios distintos (por agora) daqueles que assolam o continente asiático foram antes feitos pelo caso, largamente exposto, do canadiano Robert Lepage, autor de espectáculos como Slav e Canada, cujas criações acerca da História canadiana têm estado sob severo ataque com acusações de racismo, apropriação cultural e sub-representação das comunidades que leva e retrata em palco (indígenas e negras). Dados os cancelamentos forçados pelas manifestações populares que explodiram com as produções das suas peças, a questão encaminha-se para um braço-de-ferro entre a liberdade artística e a obrigação de obedecer a uma representação justa dos verdadeiros protagonistas das histórias tratadas em palco.

E é também aí que o teatro pode continuar a ter um protagonismo poderoso: mesmo se não conseguir transformar o mundo, pode manter a pressão sobre as mudanças necessárias ao mundo.

O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Nacional D. Maria II e do Prémio Europa de Teatro