Ricardo Dias Gomes: “Caetano foi uma inspiração pela coragem. Cada vez mais quero sentir a música como uma cura para mim mesmo"

Um álbum fascinante e arrojado, Aa, obra solitária de um músico brasileiro a viver em Lisboa, que depois de dez anos a tocar ao lado de Caetano Veloso nos conduz para o seu universo emocional.

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O baixo, a linha de baixo, pulsante, física, encorpada, é a primeira coisa que se ouve, oscilando por entre ondas de ruído que projectam tanto fragilidade como aspereza, entre a simplicidade minimalista e a complexidade estrutural. Depois a voz, num registo falado, grave, poético, delineando aparente calma mas também uma tensão latente, dizendo: “Verifique o precipício / Está lá, está aí / Não precisa mergulhar, projectar, se atacar / Já voltei sem me envolver / Sem ainda estar imune / Dá vontade de pular / Sem ter medo / Já estou noutro lugar.” É assim que começa Aa, o segundo e surpreendente álbum do músico brasileiro Ricardo Dias Gomes, que depois de ter acompanhado durante dez anos Caetano Veloso em álbuns e digressões, escolheu Lisboa para habitar.

Não sem sentimentos de culpa tendo em atenção a situação sociopolítica do seu país. “Às vezes sinto que fugi e é horrível essa sensação, porque os meus amigos estão todos lá, lutando, resistindo, mobilizados contra essa onda neofascista. É triste e assustador, mas é também um momento de união, porque há necessidade de contacto e articulação”, diz ele, acrescentando que esteve uma temporada no Brasil recentemente, e que está sempre entre lá e cá. “Estou aqui por razões familiares, a mãe de dois dos meus filhos é portuguesa, e para quem tem três filhos, como eu, é bom estar aqui. Esta serenidade, o espaço, a cidade, é boa para eles. O Rio de Janeiro está um caos. Tudo é difícil. Mas me sinto lá todo o momento.”

Ricardo, 38 anos, já tem um longo percurso. Nasceu no Rio de Janeiro, no seio de uma família de músicos – o pai, Guilherme Dias Gomes, é trompetista de jazz e tocou com Ivan Lins, o tio Alfredo Dias Gomes é um baterista que tocou com Hermeto Pascoal e a tia Denise Emmer é violoncelista clássica. Aos 10 anos o piano foi a porta de entrada na música. Na adolescência foi transformando o quarto num estúdio, aproveitando o material do pai, enquanto se dedicava ao estudo do jazz. Nos 20 anos aconteceu o que ocorre muitas vezes. Revoltou-se com as técnicas, com o lado cerebral dos estudos, e dedicou-se a encontrar-se a si próprio, desenvolvendo uma maneira mais visceral de criar música.

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Depois de ter acompanhado durante dez anos Caetano Veloso em álbuns e digressões, Ricardo Dias Gomes escolheu Lisboa para habitar. Aa é o seu segundo e surpreendente álbum

Deixou o piano e fundiu-se no baixo eléctrico. Desde então tem experimentado, por entre inúmeras colaborações ou no seio da banda que formou, os Do Amor, que lançaram três álbuns entre 2007 e 2015. Quando estava a gravar o álbum de estreia do seu grupo recebeu uma oferta irrecusável. Caetano Veloso convidou-o a si, para o baixo e teclados, a outro membro dos Do Amor, Marcelo Callado (bateria), e ao amigo Pedro Sá (guitarra), para formarem a Banda Cê, que o iria acompanhar nos anos vindouros. Caetano queria pôr-se em causa, renovar-se sonoramente e aqueles músicos pareciam-lhe os ideais para esse desafio. E assim aconteceu. Com a Banda Cê, lançou três excelentes álbuns (Cê de 2006, Zii and Zie de 2009 e Abraçaço de 2012) que estão entre os seus mais aventureiros de sempre e viajaram por todo o mundo.

“Sempre gostei da sua música, mas depois destes anos ao seu lado ainda fiquei mais fã”, confessa Ricardo. “Em primeiro, pela coragem. Reconheço nele uma honestidade extrema. Não tem nada de simulado. É tudo verdadeiro ali. Depois é ultra-sensível e tem uma memória prodigiosa. Lembra de tudo. Seja da história do país ou dele. Se você teve uma vez com ele num camarim, há muito tempo, não sei onde, ele vai-se lembrar. Isso misturado com essa sensibilidade extrema é incrível. O Caetano foi uma influência pela coragem na forma como me exponho nesses álbuns. Cada vez mais quero sentir a música como uma cura para mim mesmo.”

No inverno de 2015, a seguir à última digressão com Caetano, preparou-se para um novo desafio. Alugou um quarto num estúdio e mergulhou numa rotina de solidão, tocando e testando-se. Daí saiu -11, o seu álbum de estreia a solo, obra íntima, onde tocou todos os instrumentos, num processo que teve algo de catártico, e que para sua surpresa acabou por ser bem recebida, conquistando não só quem o conhecia das aventuras com Caetano e Do Amor, como um novo público mais próximo das linguagens exploratórias – o álbum teve, aliás, direito a uma crítica muito elogiosa de uma página na revista inglesa The Wire. “Foi um confronto com a minha história, em quem me tornei e também em torno das minhas limitações. Foi difícil. Estive sozinho, improvisando, tocando alto. Foi um modo de purificação e o resultado me surpreendeu e me emocionou muito, porque fui para lugares que eu não conhecia.” E foi também uma reacção ao facto de antes ter estado sempre em contextos colectivos.

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Ricardo Dias Gomes

“Quando se toca com alguém há um jogo de generosidade que acontece e que no final dá certo porque o desejo das pessoas é que dê certo. Sozinho não tem esse jogo. Estar com alguém no palco é fácil. Tem alguém para dialogar. Sozinho é difícil. Sofri no começo. Foi um disco onde assumi quem eu era. E depois quando isso saiu para o mundo voltou com uma energia que não esperava. Pessoas que me são especiais devolveram-me reconhecimento por esse tipo de comunicação extrema. E aí eu vi que era um caminho sem volta. Este segundo disco surgiu dessa coragem de dar um passo além. Não há compromisso com nada, seja com alguém ou um estilo. É simplesmente o meu tempo emocional que está ali exposto.”

É uma obra despojada onde as imperfeições são assumidas, movendo-se por entre territórios aventureiros, não cartografáveis, mas ao mesmo tempo belos. O baixo, as frequências sintéticas e a voz balançam entre o lirismo comovente de 123 Nenéns, elegia acústica onde discorre sobre os três filhos, ou o desvario minimalista pós-punk de Paranormal, numa obra que procura a cada esquina novas formas para exprimir melodias e emoções, sem nunca perder de vista a inteligibilidade da arte da canção.

Não é um álbum de rock, pós-punk, ambientalismo, noise, folk ou música popular brasileira, mas acaba por conter um pouco desses e de outros territórios. “A maior parte das coisas foram gravadas à primeira e mantive-as assim. Não existe elaboração. Há sujidade. Tive uma educação muito referencial, de piano clássico, e depois jazz, e agora cada vez mais ando para trás. Passei do erudito para o punk. Enchi o saco do jazz, do método para emular alguma coisa. Quero sentir a música no corpo.”

Essa relação física com a música, quase como se fosse possível entrever músculos contorcendo-se e suor escorrendo, está presente no novo disco, principalmente na relação com o baixo. É como se fossem um só, pulsando em todos os temas. “O baixo é pura paixão. Nunca tive aula. O piano, sim. O baixo eu peguei igual a um punk com guitarra. Mas hoje também estou reconciliado com esse lado mais cerebral. Aqui em Portugal tenho mais tempo e voltei a praticar, fazendo exercícios. Mas a música daqui para a frente é um lugar de paixão pura. Não faço concessão a nada a não ser ao sentimento. Esse disco está nesse lugar completamente.”

Ao contrário do que sucedia no primeiro álbum, onde tocou todos os instrumentos, no novo registo existem colaborações de amigos, como Moreno Veloso, Pedro Sá, a clarinetista Joana Queiroz ou o músico e produtor Arto Lindsay. Aliás a sombra deste último paira no álbum, pela filosofia de verdade que encerra e pela forma suja como o som é trabalhado. “Gosto demais do Arto. Tocar com ele em palco é incrível. Está sempre na música. Toca guitarra com um estilo que é só dele. Com ele percebe-se que alguém que goste de música não precisa necessariamente de entrar numa academia ou numa aula. Pode tocar do jeito que for. A técnica pode ser uma coisa desenvolvida por você. Ele é o exemplo disso. Convivo muito com ele. Então talvez tenha essa influência no disco. Ele esteve em estúdio. Às vezes você está fazendo uma coisa que é tão íntima, que só o facto de você escutar aquilo com alguém de seu lado, já leva você a ouvir de outra maneira. E o Arto tem esse poder, essa presença, sim.”

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Não é apenas sonoramente que Ricardo procura ser sintético. Nas palavras também o é, seja quando aborda aspectos autobiográficos (Partimos daqui pt 2 ou 123 Nenéns) ou processos sociais colectivos como em Pre-revolutionary state, que parece reflectir os tempos sombrios do Brasil. “Tenho proximidade com a literatura o que dá uma certa ferramenta para experimentar com palavras. Interessa-me o poder de síntese. Não gosto de coisas muito descritivas. No início até posso pegar numa coisa grande, desde que no final sobrem apenas algumas palavras.”

Para além dos discos a solo ou em grupo, ainda guarda tempo para compor para teatro ou dança, sendo esta ultima disciplina outra das inclinações, como se constata vendo o videoclipe da canção Precipício, onde surge a dançar. “Nunca tinha dançado na vida”, ri-se, “mas tenho paixão por dança desde que vi um espectáculo da Pina Bausch em 2006. Fiquei com aquilo na cabeça para sempre e às tantas, falando sobre isso com Fernando Young, que realizou o vídeo, ele me desafiou a improvar no momento e foi assim que aconteceu.” Ainda assim, em palco, mas apresentações ao vivo, é só ele e os instrumentos. Não há lugar para grandes encenações estilísticas, como constatará quem o for ver em palco, em Paris ou Roma, e também a 23 de Novembro na ZDB em Lisboa.

Para já vai lançar-se na divulgação do novo álbum. Voltar a tocar com Caetano não é impossível, mas com a Banda Cê duvida. “Aquela banda, naquele formato, dificilmente vai voltar a acontecer. Foram dez anos, três álbuns, três DVDs e várias digressões. Mas me sinto muito ligado ao Caetano. A gente é muito amiga, se escreve e se encontra sempre. E adoraria voltar a um projecto com ele porque ele é alguém incrível.”

Agora o seu horizonte é Lisboa, mas sempre com o Rio em perspectiva. “Gosto disto aqui, a cidade é bonita e tenho ainda muito por descobrir, até porque tem músicos para conhecer aqui e colaborar, mas também não vou mentir: sinto falta do Rio de Janeiro, daquela energia, é algo único.”