“O que ouço mais é a pergunta: ‘Como é que conseguimos permanecer juntos?’”

Júlio Machado Vaz aponta o ritmo frenético das pessoas, o que, numa sociedade tão rendida à gratificação momentânea, “é pouco favorável à manutenção da relação dos casais”. Conversa a propósito do lançamento do livro O amor é.

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Júlio Machado Vaz Fernando Veludo/Nfactos

O psiquiatra Júlio Machado Vaz, com 69 anos de idade, anda há décadas a pregar aos portugueses sobre sexualidade em programas televisivos e radiofónicos. Os últimos 15 anos, passou-os à procura de definições para o amor, com António Macedo e Ana Mesquita, primeiro, e com Inês Meneses, de há dez anos a esta parte. Ao PÚBLICO, o psiquiatra lembra que vivemos numa sociedade rendida à gratificação momentânea e profundamente avessa aos afectos desagradáveis e à depressão. “Nunca se pediu tanto a um parceiro dentro de um casal e nunca se viveu de uma maneira tão pouco favorável à manutenção da relação dos casais”, alerta.

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O psiquiatra Júlio Machado Vaz, com 69 anos de idade, anda há décadas a pregar aos portugueses sobre sexualidade em programas televisivos e radiofónicos. Os últimos 15 anos, passou-os à procura de definições para o amor, com António Macedo e Ana Mesquita, primeiro, e com Inês Meneses, de há dez anos a esta parte. Ao PÚBLICO, o psiquiatra lembra que vivemos numa sociedade rendida à gratificação momentânea e profundamente avessa aos afectos desagradáveis e à depressão. “Nunca se pediu tanto a um parceiro dentro de um casal e nunca se viveu de uma maneira tão pouco favorável à manutenção da relação dos casais”, alerta.

O que mudou, num mundo em aceleradíssima mudança, na forma como as pessoas se relacionam no campo amoroso, desde que começou o programa?

Uma das coisas que me parece evidente, embora extrapolar da prática clínica, onde vai quem não está bem, para a população em geral é estar no arame, é que aquilo que o [sociólogo Anthony] Giddens escreveu se verifica: ao mesmo tempo que há sexo puro e duro (e ninguém tem nada a ver com isso desde que seja entre maiores e por mútuo consentimento, e as mulheres adoptam hoje comportamentos considerados tipicamente masculinos), as relações são importantes, as pessoas batem-se por elas, mas, a partir do momento em que acham que não é gratificante, partem para outra. Isso verifica-se claramente, o que é um contraste com o conceito inicial de amor romântico em que havia o homem ou a mulher da nossa vida. Hoje, as pessoas mais do que estarem à procura da pessoa da sua vida, estão à procura do tipo de relação que verdadeiramente querem.

Este livro é a reivindicação do direito ao espaço para a conversa?

Sim, com a ambição que a partir das nossas conversas haja um efeito multiplicador. Há tempos alguém com 30 e poucos anos de idade dizia-me que os pais que costumavam ouvir “O Sexo dos Anjos” e lhe disseram para ouvir “O Amor é” e que estava muitas vezes de acordo, outras em completo desacordo, mas que aquilo o fazia pensar. Essa foi sempre a intenção.

Não tem medo de se repetir?

Tenho pânico. Nos intervalos das gravações entre os [programas] curtos (que de tão curtos não dão para nada, são uma espécie de versão [da canção] Hello Goodbye, dos Beatles) e os longos, a Inês tem que me fazer psicoterapia, porque eu ponho-me a dizer-lhe “Eu já disse isto 37 mil vezes, ainda por cima sou um preguiçoso, vou buscar sempre os mesmos exemplos!..”. Mas ela, que tem realmente a força de um dínamo, dá-me um pontapé nas costas, sobretudo, não me deixa ter pena de mim mesmo, e obriga-me a continuar. Mas claro já me repeti milhares de vezes.

De resto, presumindo que há gente nova a sintonizar a rádio, as velhas questões da natureza humana mantêm-se: os amores e desamores, a solidão, os desencontros, a ruptura.

É verdade. E isso vê-se no consultório, onde os homens começaram a aparecer, umas vezes de motu próprio outras vezes porque as mulheres já são capazes de lhes dizer “tu tens um problema de ejaculação prematura, isso tem solução, e, se não vais tentar resolver, isso é uma demonstração de egoísmo, pelo que a relação pára aqui”. E, portanto, eles são voluntários à força, porque não querem perder aquela companheira ou companheiro. Mas, continuando nós a ouvir muito o discurso sobre as disfunções sexuais, hoje em dia o que ouço mais é a pergunta “Como é que conseguimos permanecer juntos?”.

Isso é um sintoma da coexistência de dinâmicas e ritmos muito diferentes. Ao mesmo tempo que impera a ideia de que relações podem ser descartadas, quando não satisfatórias, há um esforço das pessoas para se manterem na relação?

Das que estão disponíveis para isso. Ao lado tem pessoas que saltitam, o que é expectável numa sociedade que está rendida à gratificação momentânea e que é profundamente avessa aos afectos desagradáveis e à depressão, seja a naturalíssima tristeza seja a angústia. Mas estou a falar das que vão pedir ajuda. E estas estão muitas delas encravadas porque nunca se pediu tanto a um parceiro dentro de um casal e nunca se viveu de uma maneira tão pouco favorável à manutenção da relação dos casais. Nós vivemos a um ritmo alucinante, as pessoas estão permanentemente ligadas, o que é terrível para as ligações mas que é uma exigência de grande parte dos trabalhos.

Isto no âmbito de uma relação amorosa ou conjugal pode ser contraproducente?

É complicado a todos os níveis. Hoje tem casais na justiça por separações em que alguém, com aspas ou sem aspas, traiu o outro com uma pessoa com quem nunca esteve e que vive na Nova Zelândia. O problema é que está três horas por noite a falar ao computador com ela.

Uma das frases que estão no vosso livro tem que ver com a interrogação sobre como é que o amor sobrevive a esta discussão sobre quem vai buscar ou trazer os miúdos.

Isto foi algo que sempre aconteceu. [O criador da psicanálise Sigmund] Freud chamava ao bebé Sua Majestade, o bebé. Quando chegam suas majestades, um casal passa a ser constituído por dois pais e, nesta sociedade frenética, e sendo o filho do homem tão dependente durante tanto tempo, gira tudo muito à volta daquela criança. E, portanto, a vertente relacional sofre. São tempos difíceis. Há muitos casais em que, a seguir ao nascimento dos filhos, ou há uma separação ou não há mas há um afastamento erótico claro.

Isto ter-se-á agudizado com o aumento da actividade feminina fora de casa?

Que tem várias vantagens mas também tem algumas desvantagens, sobretudo para a mulher. Porque há muitas mulheres que passaram a acumular duas profissões: continuaram a ser as cuidadoras a 90% de toda a gente lá em casa e passaram a ter um trabalho na esfera pública como os homens. É por isso que há sociólogos que falam das mulheres orquestras, que tocam não sei quantos instrumentos ao mesmo tempo. E é verdade. Mas, em relação ao desinteresse sexual, nós estamos a registar aumentos, que não estavam nas nossas previsões, de baixo desejo e desinteresse sexual entre os mais novos. Estou a falar de gente com trinta e poucos anos. Uma das primeiras perguntas que lhes faço é: isso para vocês é satisfatório ou não? Eles dizem que não. Que acham que se habituaram a dispensar a vertente erótica mas não estão satisfeitos com isso. Aqui é importante passar a mensagem de que não há um normal estatístico, as pessoas têm é que decidir o que é confortável para elas. Mas depois, quando as pessoas me descrevem as suas vidas, o ritmo a que vivem, é verdadeiramente assustador.

Mantém-se no ar com a Inês há dez anos. Que feedback têm tido dos ouvintes? Algum episódio mais inusitado?

Acho que nunca houve um episódio que competisse com a ocasião em que eu cheguei ao carro e estava a ser multado por uma senhora polícia porque estava num lugar de estacionamento proibido. Quando ela me pediu a identificação, perguntou: “Você é o Machado Vaz do Sexualidades?”. Quando lhe disse que sim, perguntou-me “Se eu fizer vista grossa à multa, consulta o meu marido?”. Eu, que sou um morcão da média burguesia, disse-lhe que sim, mas que passasse lá a multa. E há quem não goste do programa, como é evidente. Uma vez entrei no Facebook e tropecei num pobre português a dizer “Por favor, a caminho da missa, apanhei com a missa do Júlio Machado Vaz. Era só o que me faltava!”.

Não são alvo também deste ódio que prolifera sob anonimato nas caixas de comentários? Alguma vez foi interceptado por algum marido insatisfeito?

Isso aconteceu muito mais na televisão. Na televisão, fartei-me de receber cartas de homens a dizer ‘Estás vendido às mulheres, és homossexual, de certeza”, isto em vernáculo, como é evidente. Foi um fenómeno minoritário, mas é bom não esquecer que o Sexualidades foi vítima de censura: ao fim de seis meses, passaram-me o programa para a uma e meia da manhã, e isso é uma censura como outra qualquer. N'“O amor é”, ainda com a Ana Mesquita, houve uma polémica porque algumas organizações ficaram muito irritadas porque ambos tínhamos dito que éramos a favor do “sim” [no referendo ao aborto]. Tínhamos feito um programa sobre isso e, no dia seguinte, ironicamente, ia acrescentar que votava “sim, mas”, porque não bastava votar sim, era preciso apoiar as gravidezes adolescentes, etecetera.

Na altura, o Rui Pêgo, a quem eu faço uma dedicatória no livro, pediu-me que não falasse e que gravasse outro programa. Disse-lhe que por mim não gravava, mas que, se a Ana me pedisse, aceitaria. E a Ana disse “Nem pensar”. O Rui então decidiu: “Se não gravam, não há programa”. E assim aconteceu. O [deputado do BE, recentemente falecido] João Semedo atirou-se ao ar e levou o assunto à Assembleia da República, o provedor disse que aquilo não fazia sentido, mas está a ver o conforto que é dois homens, eu e o Rui Pêgo, terem um choque desta forma e isso não ter beliscado minimamente a amizade.