Mathis Wackernagel: “A dimensão da humanidade está a sobrecarregar a dimensão da Terra”

Nos anos 90, o engenheiro mecânico desenvolveu o conceito de pegada ecológica. Agora, aos 55 anos, continua a difundi-lo pelo mundo e passou por Portugal.

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Nos anos 90, Mathis Wackernagel desenvolveu o conceito de pegada ecológica DANIEL ROCHA

Se há pessoa a quem podemos perguntar qual a pegada que estamos a deixar na natureza, é a Mathis Wackernagel. Há mais de 20 anos que o engenheiro mecânico suíço criou o conceito de pegada ecológica – estimativa da superfície terrestre necessária para suportar o nível de vida de uma população – e tem vindo a espalhá-lo pelo mundo. Entretanto, fundou a organização Global Footprint Network. Através dela, quer desmitificar ideias erradas que as pessoas têm sobre os recursos naturais e fazer com que apliquem quatro grandes componentes relacionadas com a eficiência energética ou a alimentação. 

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Se há pessoa a quem podemos perguntar qual a pegada que estamos a deixar na natureza, é a Mathis Wackernagel. Há mais de 20 anos que o engenheiro mecânico suíço criou o conceito de pegada ecológica – estimativa da superfície terrestre necessária para suportar o nível de vida de uma população – e tem vindo a espalhá-lo pelo mundo. Entretanto, fundou a organização Global Footprint Network. Através dela, quer desmitificar ideias erradas que as pessoas têm sobre os recursos naturais e fazer com que apliquem quatro grandes componentes relacionadas com a eficiência energética ou a alimentação. 

Na semana passada, esteve em Portugal para apresentar os resultados de um projecto sobre a pegada ecológica de seis municípios portugueses, um estudo realizado em conjunto com a associação Zero e a Universidade de Aveiro. Na conversa com o PÚBLICO, na Fundação Calouste Gulbenkian, mostrou-se sorridente, descontraído e com sentido de humor. Afinal, para si, ainda é possível termos um “futuro fantástico”. Basta sabermos que caminho queremos seguir.

Nos anos 90, juntamente com o professor William Rees da Universidade de British Columbia (Canadá), criou o conceito de pegada ecológica. Qual o balanço que faz da aplicação deste conceito no mundo?
Uma das aplicações da pegada ecológica chama-se “dia da sobrecarga da Terra”. Desde 1 de Janeiro até esse dia – este ano foi a 1 de Agosto – sabemos que usámos mais recursos naturais do planeta do que aquilo que eles se conseguem renovar num ano inteiro [Portugal gastou os recursos naturais renováveis de 2018 a 16 de Junho]. Esta é uma forma útil, simples e quantitativa de perceber o que está em causa.

Ao mesmo tempo, percebemos como estamos longe de fazer o suficiente pelo planeta. No geral, penso que temos essa sensibilidade, mas estamos a acumular muitas ideias erradas. Na organização [Global Footprint Network] estamos a tentar acabar com essas ideias.  

E que ideias erradas são essas?
A primeira grande ideia errada é a de que os recursos naturais não interessam. O aumento do consumismo, a forma como olhamos as guerras e não as vemos como um reflexo do conflito de recursos ou ainda a maneira como construímos as cidades sem questionar de onde vêm esses recursos são sinais de que a realidade física não interessa.

O Banco Mundial desenvolveu um estudo sobre a riqueza. Há três grandes tipos de riqueza: aquela que temos construído, a riqueza humana e a riqueza dos recursos naturais. A conclusão é que só 9% dessa riqueza é capital natural. A sério?! Como é que o planeta pode valer tão pouco? Se estivermos numa nave espacial – na verdade, até estamos numa chamada “Terra” – e o uso excessivo for o sistema que suporta a vida, não há forma de regenerar o oxigénio. Estamos numa nave espacial, temos um uso excessivo como sistema de suporte da vida e não o estamos a considerar valioso.

A outra ideia errada já não é sobre se os recursos são importantes, porque, na verdade, as pessoas até valorizam o petróleo ou os minérios. Contudo, os recursos mais limitados são recursos vivos que precisam de se regenerar. Muitas vezes, há a ideia de que como se regeneram, então são infinitos. Mas só são infinitos se os gerirmos bem.

Há ainda a ideia de que estes problemas não são de cada um de nós. As pessoas dizem: “A Terra tem grandes problemas. O que posso fazer?” Mas, ao mesmo tempo, também pensam: “Porquê eu?” A minha resposta é simples: “Se estamos tão convencidos que estamos no meio de uma tempestade, qual é a vantagem de não prepararmos o barco? Porquê esperar?”

Actualmente, de quantos planetas precisamos para satisfazer as nossas necessidades?
Se compararmos com aquilo de que necessitamos para o planeta se renovar, precisamos de mais 70%. E isto só para as pessoas, depois há também as espécies selvagens. Precisamos de mais 0,7 de um planeta para toda a humanidade.

E Portugal, de quantos planetas precisa?
Actualmente, Portugal gasta três vezes mais do aquilo que os ecossistemas se conseguem renovar [seriam necessários exactamente 2,19 planetas para repor os recursos naturais se todas as pessoas do mundo consumissem como os portugueses]. A grande parte é devido aos combustíveis fósseis.

Então o CO2 (dióxido de carbono) é o principal problema?
Não se emite só CO2. O principal problema é que as actividades humanas estão a ficar com uma dimensão maior do que o planeta. No fundo, estamos num barco demasiado frágil para aguentar a forma como estamos a comandá-lo.

Corremos o risco de esgotar os recursos da Terra?
É um risco e uma realidade. O que vimos actualmente são os efeitos. Em algumas áreas do mundo, estamos a esgotar a água. Nos EUA, há sítios em que a água já é tão escassa que a agricultura tem de parar. Ou na capital do Iémen [Sana], por exemplo, a água subterrânea estava entre dez a 50 metros há cerca de 40 anos. Agora está a milhares de metros.

Neste momento, o que é mais preocupante no nosso planeta?
Acho que é importante ter a noção de que a dimensão da humanidade está a sobrecarregar a dimensão da Terra. Há uma série de coisas que são sintomas do nosso uso excessivo: as florestas estão a desaparecer em alguns sítios, há espécies a extinguirem-se ou CO2 a acumular-se na atmosfera.

O que é que cada um de nós pode fazer para minimizar este tipo de efeitos?
É fácil. Há só uma coisa que se pode fazer. Mudar a expressão “devo fazer” para “quero fazer”. O “devo fazer” é a grande barreira para o progresso. Por exemplo, as pessoas têm de dizer: “Quero viver numa cidade que não use carros.” Depois, há quatro grandes áreas condutoras que podem fazer a diferença.  

Para um cidadão normal?
Para toda a gente. Um delas é como organizamos [e construímos] as nossas cidades. Por exemplo, em Siena [Itália], as pessoas não precisam de usar muito o carro e há praças enormes. Nem pensam que vivem numa casa pequena porque a cidade é a sua casa. Prefiro viver em Siena do que em Atlanta [nos EUA, que gasta quatro vezes mais recursos do que a cidade italiana].

Aqui em Portugal estive em Almada, que é mais "atlantificada" [de Atlanta], porque é mais urbanizada e dependente de carros. Também consegui ver a revitalização do centro de Lisboa, que tem eléctricos e pessoas a andar. É mais uma "sienificação" [de Siena]. Mesmo assim, Siena não é muito eficiente energeticamente. Tem de tornar as suas casas mais eficientes a esse nível.

Afinal, a segunda área é a forma como usamos a energia. A terceira é como comemos. Podemos evitar o desperdício de alimentos, comer menos carne, mais vegetais e usar mais a indústria local. A quarta área está relacionada com uma fórmula matemática: se subtrairmos população, teremos mais planeta por pessoa.

No fundo, defende que as famílias têm de ser pequenas?
Exactamente. Os benefícios das populações pequenas não chegam tão rapidamente como os das populações maiores. Mas, a longo prazo, o efeito pode ser tremendo. Também significa que as mulheres possam ter mais oportunidades e direitos [ou que o nível de educação seja mais elevado].

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Mathis Wackernagel esteve em Portugal para apresentar a pegada ecológica de munícipios portugueses Daniel Rocha

Estima-se que em 2050 a população mundial seja de cerca de dez mil milhões de pessoas. Haverá recursos para todos?
Não faço previsões, mas vai ser muito exaustivo. As pessoas continuarão a viver até aos 80 anos, mas a vida será bem difícil. É isso que acontecerá quando os recursos escassearam.

No meio de tudo isto, as decisões políticas são fundamentais...
Baseadas na expressão o que se “quer fazer” e não o que se “deve fazer”. As decisões políticas estão repletas do que “deve ser feito” e, depois, nunca têm um seguimento. Por exemplo, Tony Blair [antigo primeiro-ministro britânico] disse que no futuro todas as casas construídas no Reino Unido tinham de ser carbono zero. Até agora, nada foi feito e continua-se a construir casas deploráveis. Tudo porque ele apenas disse que era necessário.  

Mas relativamente a decisões políticas como o Acordo de Paris, acha que este acordo está a funcionar?
O que é fantástico no Acordo de Paris é que se estabeleceu um objectivo claro. É extraordinário que todas aquelas nações concordem em querer limitar a subida da temperatura em valores bem abaixo dos dois graus Celsius [face aos níveis pré-industriais e até ao final do século].

E vamos conseguir cumprir esse objectivo?
Nos relatórios do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas] refere-se que com 450 ppm [partes por milhão] de CO2 equivalente na atmosfera [quantidade de gases de efeito de estufa emitida] teríamos 66% de oportunidade de nunca excedermos esses dois graus. Agora a pergunta é: quantos ppm de CO2 equivalente temos agora? No ano passado o valor foi de 493 ppm de CO2 equivalente. Por isso, [para que se cumpra] temos de parar isto agora.   

O facto de Donald Trump querer tirar os EUA desse acordo também foi desastroso?
O Acordo de Paris não é apenas Donald Trump. Preocupa-me também os fenómenos a acontecer no Brasil, na Hungria ou nas Filipinas. Depois tudo isto se reflecte nas pessoas, que pensam que nada funciona.  

E sobre o último relatório do IPCC: acha que é possível, com muito esforço, limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius?
Essencialmente, esse relatório confirma que o único futuro possível que temos é com uma economia regenerativa, que representa apenas aquilo que precisamos para viver, ou seja, a biocapacidade [capacidade regenerativa dos seus recursos] do planeta. É por isso que cada país deve perceber que recursos tem e como os usa. Como neste momento Portugal usa cerca de três vezes mais do que tem, não está próximo de uma economia regenerativa.

Tem alguma esperança no futuro do planeta?
A esperança não é um grande conceito para mim, porque é o oposto de desespero.

Então qual é a palavra certa?
É possibilidade. Penso que tudo é possível.

Quer deixar alguma mensagem para as pessoas sobre essa possibilidade?
Pensem no que querem realmente fazer porque só temos um planeta. O que quer fazer Portugal? Pessoalmente, adoro viver numa cidade sem carros. É entusiasmante para mim. Depois, têm de saber qual a biocapacidade do vosso país e sentirem-se necessários. Podemos ter um futuro fantástico, porque temos um grande potencial e os humanos são extraordinários. Temos um pedaço de ouro à nossa frente e nem o vemos.

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Mathis Wackernagel refere que temos muitas ideias erradas sobre os recursos naturais Daniel Rocha