Hélio Jaguaribe: Brasil e Portugal, as raízes e o projecto

Hélio Jaguaribe foi um dos mais notáveis intelectuais brasileiros da sua geração. A sua morte marca o fim de uma era no Brasil.

A notícia de que Hélio Jaguaribe (1923-2018) nos deixou para sempre é uma notícia muito triste e uma marca simbólica do fim de uma era no Brasil.

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A notícia de que Hélio Jaguaribe (1923-2018) nos deixou para sempre é uma notícia muito triste e uma marca simbólica do fim de uma era no Brasil.

Hélio Jaguaribe foi um dos mais notáveis intelectuais brasileiros da sua geração. Sociólogo de formação, foi exilado, depois do golpe de 1964, nos Estados Unidos, onde leccionou na Universidade de Harvard. Com a restauração da democracia regressou ao Brasil e foi um dos fundadores do PSDB, de que se viria a afastar, mais tarde, quando assumiu a pasta da Ciência e da Tecnologia no Governo Color. Deixa-nos uma vastíssima obra, onde se inclui o monumental Estudo Crítico da História.

O entusiasmo exuberante de Hélio por tudo o que tinha produzido o génio humano encantou-me, desde o nosso primeiro encontro: foi em 1986, no Rio de Janeiro, no Instituto de Estudos Sociais, que dirigia.

Intelectual engagé, para si o ser humano tinha de dar um sentido à vida, tinha de ser um criador de grandes projectos, a “ideia a realizar” de que fala Celso Lafer, que fizessem progredir as causas pelas quais se batia, em primeiro lugar a do “Brasil próspero e influente”.

 Nos anos 50, lançou o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e a revista Cadernos do Nosso Tempo, com outras figuras marcantes do pensamento brasileiro do século XX, como Cândido Mendes, que tinham como finalidade não só analisar, mas fazer propostas para vencer os problemas do subdesenvolvimento do Brasil, como o sistema “cartorial” e o clientelismo eleitoral, que ainda hoje é um dos grandes obstáculos que a democracia brasileira enfrenta.

Para Hélio, o Brasil podia ser uma das grandes potências do século XXI, mas para isso tinha de se reformar profundamente. Defendia, para isso, ainda que sem sucesso, uma aliança das forças sociais-democratas do centro-esquerda, do PT e do PSDB.

Filho de uma portuguesa de Vila Nova de Gaia, foi em Portugal que fez a instrução primária. Lembro-me bem do grande entusiasmo com que recebeu a nacionalidade portuguesa. 

Para Hélio, em Portugal estavam as raízes do Brasil. Nada de mais comovente do que ouvi-lo na gruta de Camões, “o nosso maior poeta”, a ler o episódio Inês de Castro de uma antiga edição de Os Lusíadas.

Portugal, “essa pequena grande potência”, como dizia, tinha sido essencial na construção do "gigante brasileiro", dando ao Brasil a unidade que não existiu na América hispânica. D. João VI, que levou consigo uma parte da elite portuguesa, permitiu a criação do Estado brasileiro, porque, na sua expressão, “era representante de um governo à procura de um país e encontrou um país à procura de um governo”.

O seu portuguesismo nada tinha a ver com o luso-tropicalismo de Gilberto Freire, não era passadista, nem feito de amor-ódio terceiro-mundista. Pelo contrário, era parte do seu projecto para o futuro do Brasil. A relação do Portugal europeu com o Brasil era “um decisivo factor de redução da sua vulnerabilidade e de elevação do seu patamar de relacionamento com a CEE”, afirmou Hélio, escrevendo em 1989 na revista Estratégia do IEEI.

Para Hélio, a comunidade cultural luso-brasileira constitui uma “realidade histórica que se impõe por si mesma”, que exige mecanismos que dêem substância económica e política a essa relação.

Para ele tinha chegado o momento de ir muito além da retórica da saudade. As potencialidades surgidas com a democratização do Brasil e a adesão de Portugal às Comunidades Europeias deviam ser amplamente exploradas. Foi assim que aquele primeiro encontro deu origem a uma série de iniciativas do IEEI, envolvendo também, entre outros, Celso Lafer, Gelson Fonseca e Guilherme d’Oliveira Martins. E a uma longa amizade com Mário Soares, com quem se encontrou inúmeras vezes. A dimensão bilateral passaria para um patamar inter-regional com a criação do Mercosul, no início dos anos 90, e o lançamento do Fórum Euro-Latino-Americano, com o objectivo de dar um sentido estratégico às relações luso-brasileiras.

Os anos 90, com as novas ambições europeias e com a criação do Mercosul, projecto de integração sul-americano, pelo qual se bateu com os seus amigos argentinos que, como ele, recusavam a chamada inimizade histórica, criaram condições favoráveis para um projecto UE-Mercosul impulsionado por Portugal e pelo Brasil.

Para Hélio, a ordem mundial era dominada pela defesa de um neoliberalismo radical por parte dos EUA, um modelo que se revelou desadequado para a superação das graves injustiças sociais brasileiras, preconizando, como alternativa, um “liberalismo pragmático” e a construção de uma ordem multipolar. Mas, para ele, o sucesso do projecto multipolar para o Brasil “necessita que a União Europeia se afirme como novo pólo não só económico, como político”.

Nas últimas vezes que nos encontrámos estava dominado por uma enorme inquietação com os caminhos do seu Brasil e não ficava animado com as notícias que lhe levava da Europa. Neste momento de renascimento do nacionalismo identitário é bom lembrar a conclusão que Hélio tirou do seu Estudo Crítico da História: o futuro não seria o choque das civilizações mas sim, a longo prazo, a “formação de uma Civilização Planetária”. Como escreveu nos anos Bush, “O mundo enfrenta uma única alternativa. Suicídio colectivo ou a instituição (...) de uma ordem mundial racional e justa. Na forma de uma Pax  Universalis”.