Morreu Robert Venturi, o arquitecto que gostava da contradição

Foi com ele que aprendemos o pós-modernismo. Nos anos 60, o arquitecto e teórico norte-americano denunciou o puritanismo do Movimento Moderno, porque a arquitectura também precisa de história, dos néon de Las Vegas e até de algum humor.

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A casa que Robert Venturi fez para a mãe em 1964 é uma boa síntese do que o arquitecto norte-americano, desaparecido na terça-feira aos 93 anos, defendeu em toda a sua vida nas obras que desenhou ou nos livros que escreveu. É uma casa com um telhado composto por duas águas, mesmo que esse telhado pareça interrompido por uma fenda para quem o vê da fachada principal. Mas como as coisas não são só o que parecem, o telhado ganha uma terceira água, um novo plano, quando vemos a casa das traseiras.

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A casa que Robert Venturi fez para a mãe em 1964 é uma boa síntese do que o arquitecto norte-americano, desaparecido na terça-feira aos 93 anos, defendeu em toda a sua vida nas obras que desenhou ou nos livros que escreveu. É uma casa com um telhado composto por duas águas, mesmo que esse telhado pareça interrompido por uma fenda para quem o vê da fachada principal. Mas como as coisas não são só o que parecem, o telhado ganha uma terceira água, um novo plano, quando vemos a casa das traseiras.

“É uma casa que parece uma casa, com telhado, chaminé e ornamentação. Temas que tinham sido abandonados pela arquitectura moderna. A casa rompe com o modelo da caixa de vidro minimalista”, diz o crítico de arquitectura do PÚBLICO Jorge Figueira quando lhe perguntamos qual é a importância de Robert Venturi no aparecimento e definição do pós-modernismo. Complexidade e Contradição em Arquitectura, o livro que Venturi escreveu em 1966, é um manifesto “contra o exclusivismo do ‘menos é mais’ modernista” (Mies van der Rohe, dixit), contra o purismo das formas, a que o norte-americano contrapõe o seu provocador “menos é chato”. Repesca a importância da história da arquitectura para a prática da profissão de arquitecto: “Venturi diz que há uma história das arquitecturas maneiristas, que não são feitas com modelos puros mas são derivação ou abastardamento, que têm muitas ambiguidades. Defende que é isso que a arquitectura precisa para superar o dogma moderno da unidade de estilo, a ideia de uma coerência absoluta para a arquitectura. O livro Complexidade e Contradição é um elogio da arquitectura ambígua.”

Segundo o obituário do New York Times, a morte de Roberto Venturi, que tinha abandonado o atelier em 2012, foi consequência da doença de Alzheimer. Embora ele rejeitasse o título, o jornal norte-americano recorda que ele era muitas vezes visto como “o pai do pós-modernismo”, lembrando que o próprio Philip Johnson, primeiro director do Departamento de Arquitectura do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) se recordava de ter recebido Complexidade e Contradição com alívio e que o ensaio o ajudara a libertar-se da rigidez do modernismo.

Na biografia que lhe dedica o site do Prémio Pritzker, com que foi distinguido em 1991, Venturi explica o que pretendia com a edição do livro-manifesto: “Estávamos a clamar por uma arquitectura que promovesse riqueza e ambiguidade em vez de unidade e clareza, contradição e redundância em vez de harmonia e simplicidade.” Apesar de só ter casado com a arquitecta e urbanista Denise Scott Brown em 1967, um ano depois de ter escrito o manifesto, o plural utilizado aqui não é inocente, dado que o seu trabalho, fora e dentro do atelier, foi, em larga medida, feito a quatro mãos, em parceria com a mulher.

Quando lhe foi atribuído o Pritzker, aliás, defendeu que o prémio devia tê-la incluído como alvo da distinção. Denise, que mais tarde denunciou a decisão como sexista, não esteve na entrega do mais importante prémio de arquitectura na Cidade do México.

O valor do feio e vulgar

Embora Robert Venturi não gostasse do aspecto codificado que o pós-modernismo ganhou nos anos 80, a sua influência no movimento “é grande”, reconhece Jorge Figueira. “De facto, são suas as obras e os livros mais corrosivos. Ele e o Aldo Rossi, o segundo com Arquitectura da Cidade, publicado também em 1966, dão o mote para o que depois chamamos pós-modernismo. Rossi mais a partir de uma leitura da cidade e Venturi do edifício.”

Com Aprendendo com Las Vegas, o seu segundo livro escrito em parceria com Denise Scott Brown e Steven Izenour, publicado em 1972, defende-se a Las Vegas criada pelos casinos, a cultura pop, agora do ponto de vista da arquitectura: “É uma apologia da arquitectura ‘feia e vulgar’, onde o espaço, protagonista do moderno, é trocado pela análise dos ‘símbolos’ dos letreiros comerciais. Não ostentando o nome ‘pós-modernista’, Venturi dá as coordenadas centrais para o movimento.” Um dos seus edifícios mais conhecidos, a Guild House, um lar para idosos que inaugurou no mesmo ano do que a casa da mãe, era originalmente encimado por uma bela antena de televisão dourada.

“O Movimento Moderno estava quase bem”, respondia àqueles que o classificavam como pós-moderno, citando-se quando escreveu Complexidade e Contradição e nele a sua célebre pergunta – “A Rua Principal não está quase bem?”. Defendia “a vitalidade desordenada” da cidade.

No prefácio original de Complexidade e Contradição, lembra a biografia feita pelo Prémio Pritzker, Venturi escreveu: “Como arquitecto, tento ser guiado não pelo hábito mas por um sentido consciente do passado – pelo precedente, considerado de uma forma pensada. […] Como artista, eu escrevo sobre o que gosto: complexidade e contradição. Através daquilo de que descobrimos gostar – aquilo para que somos facilmente atraídos -, podemos aprender muito do que realmente somos.”

Talvez a mais “comovente” das lições de Venturi, como diz Jorge Figueira, que tem vários livros publicados sobre o pós-modernismo, é que o arquitecto só tem que fazer pequenas coisas, não tem que deitar abaixo e fazer tudo de novo. “Isso implica uma profunda alteração na postura do arquitecto.” De alguma forma, hoje, todos os arquitectos são herdeiros das ideias de Venturi, de Álvaro Siza a Rem Koolhaas.

Com Mário Lopes