Homossexualidade deixa de ser crime na Índia

Supremo Tribunal revoga lei imposta pelos colonizadores britânicos que descrevia o sexo entre gays como “delito antinatural”.

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A decisão foi recebida em festa. No exterior do Supremo Tribunal da Índia, em Deli, centenas de activistas explodiram em abraços, aplausos e lágrimas. A lei que até esta quinta-feira de manhã criminalizava o sexo gay na Índia era uma das mais antigas do mundo e foi preciso percorrer um caminho cheio de obstáculos para a anular.

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A decisão foi recebida em festa. No exterior do Supremo Tribunal da Índia, em Deli, centenas de activistas explodiram em abraços, aplausos e lágrimas. A lei que até esta quinta-feira de manhã criminalizava o sexo gay na Índia era uma das mais antigas do mundo e foi preciso percorrer um caminho cheio de obstáculos para a anular.

“É a nosso favor”, gritou uma jovem, Smriti, enquanto abraçava outras três e antes de ser cercada por câmaras de televisão, descrevem os jornalistas no local. Smriti recebeu uma mensagem de texto de um jornalista que estava no interior do tribunal. “Há muito trabalho por fazer, mas é um enorme primeiro passo”, disse a universitária, de 19 anos. “Já não somos criminosos no nosso próprio país”.

“Criminalizar relações sexuais é irracional, arbitrário e manifestamente inconstitucional”, afirmou o juiz presidente Dipak Misra na leitura da sentença, cita a emissora pública britânica BBC no seu site. “Estava a tornar-me num ser humano cínico com muito pouca esperança no sistema. Mas isto volta a mostrar que, no fim, somos uma democracia funcional onde a liberdade de escolha e de expressão ainda existem”, afirmou ao jornal The Guardian Ritu Dalmia, uma entre cinco indianos que assinaram a petição legal na origem deste veredicto.

Restaurar a dignidade

Segundo Geeta Pandey, correspondente da BBC na capital indiana, os activistas estão a falar de “um novo começo para as liberdades pessoais”. Admitindo que o mais importante será conseguir mudar atitudes num país conservador onde os líderes de todas as religiões condenam a homossexualidade, Pandey recorda que “quase sempre as leis têm um papel importante na mudança de mentalidades” e que, “ao reconhecer o direito da comunidade ao amor, o Supremo restaurou a dignidade que durante muito tempo lhes foi negada”.

O actual Governo é extremamente conservador, mas o preconceito atravessa todo o espectro político: em 2011, o então ministro da Saúde Ghulam Nabi Azad, do Partido do Congresso (agora na oposição), descreveu a homossexualidade como uma doença.

Na prática, o que os juízes analisaram agora foi a sentença de um julgamento de 2013 que ratificou a lei conhecida como Secção 377. Mas com esta decisão parece finalmente ter chegado ao fim o turbulento percurso para legalizar a homossexualidade na Índia moderna: entre 1994 e 2011, uma série de julgamentos saltaram de tribunal em tribunal, com os juízes a evitarem chegar a deliberações finais.

E já em 2009, o Supremo de Deli revogara a Secção 377 do Código Penal, considerando que a proibição de “relações sexuais contra a ordem natural” violava os direitos à vida, liberdade e igualdade inscritos na Constituição indiana. Quatro anos mais tarde, o mesmo tribunal que esta quinta-feira pôs fim a uma lei com 160 anos considerava que o seu uso era tão pouco frequente, e visava uma “parte tão minúscula” da população, que não podia considerar-se que violava os direitos constitucionais dos indianos.

Na altura, o Supremo deixou milhares de indianos em choque, vendo como uma parte fundamental da sua vida e identidade voltava a ser um crime punível com prisão perpétua. “Foi uma surpresa e um veredicto muito estranho”, diz Mohan, um advogado de Deli ouvido pelo Guardian, que pede para usar apenas o seu primeiro nome, ainda preocupado com os preconceitos que pode enfrentar no trabalho.

Direito à privacidade

Muitos advogados e activistas trabalharam incessantemente para revogar a decisão do Supremo, mas só em 2017 tiveram a oportunidade que antecipou o progresso definitivo. “O que mudou tudo foi o julgamento sobre privacidade do ano passado”, explica Gautam Bhatia, advogado e jurista. “Em Agosto de 2017, o Tribunal Supremo afirmou que há um direito fundamental à privacidade e, no âmbito dessa deliberação, cinco juízes consideraram que a decisão de 2013 era errada.”

“Foi algo sem precedentes. Juízes a comentarem um caso sem qualquer ligação para dizer que esse estava errado. Mas assim que o disseram mataram a Secção 377, implicitamente se não de modo formal”, afirma Bhatia ao diário britânico.

A morte formal chega agora, uma decisão que legaliza comportamentos que muitos indianos defendem que eram completamente aceitáveis na sua cultura antes dos colonizadores britânicos chegarem para impor a sua moral vitoriana, com um conjunto de leis “contra o vício público e a imoralidade instituídas em todo o império”.