Da Checoslováquia à Grécia

A lição a retirar da invasão da Checoslováquia é que ela é ainda relevante hoje, porque a Europa que tentámos construir após a queda do Muro de Berlim se fundamenta num princípio: nunca mais.

Na semana passada, como a polémica do momento era sobre a extrema-direita, havia quem só nos desse autorização moral para falar dela, se antes se falasse da extrema-esquerda. Como essa polémica estava relacionada com a história do fascismo na Europa, era impossível falar sobre isso sem que antes nos perguntassem: “Então e o comunismo?” E como essa polémica tinha que ver com uma Le Pen — família conhecida pela minimização e até negação dos crimes da Alemanha nazi e da França de Vichy —, houve nas redes sociais quem exigisse que antes de qualquer pronúncia sobre tais temas se fizesse logo uma denúncia sobre os crimes do estalinismo ou da União Soviética.

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Na semana passada, como a polémica do momento era sobre a extrema-direita, havia quem só nos desse autorização moral para falar dela, se antes se falasse da extrema-esquerda. Como essa polémica estava relacionada com a história do fascismo na Europa, era impossível falar sobre isso sem que antes nos perguntassem: “Então e o comunismo?” E como essa polémica tinha que ver com uma Le Pen — família conhecida pela minimização e até negação dos crimes da Alemanha nazi e da França de Vichy —, houve nas redes sociais quem exigisse que antes de qualquer pronúncia sobre tais temas se fizesse logo uma denúncia sobre os crimes do estalinismo ou da União Soviética.

Esta semana tive então curiosidade de ver se alguém falaria de um dos mais graves desses crimes — a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia há 50 anos. Com apenas uma exceção — José Milhazes, no Observador — não vi qualquer outra menção à invasão da Checoslováquia entre os comentadores da imprensa nacional. O que é mais curioso, o silêncio foi total da parte dos comentadores de direita que são tão lestos a pedir que comentemos o que dizem e fazem os regimes e políticos de esquerda (quando se trata de desviar o assunto daquilo que dizem ou fazem os líderes políticos da direita).

Em tempos chamei a isto o argumento do “entaladinho”, amálgama de “então-falas-sobre-isto-mas-sobre-aquilo-estás-caladinho”. O argumento do entaladinho produz um debate que não sai do sítio e uma política que não avança para lá do tribalismo e dos lugares-comuns. E isso é lamentável porque, para lá da esquerda e da direita, é essencial entender que cada violação de direitos humanos vale por si mesma e que de todas há lições históricas a retirar.

A lição a retirar da invasão da Checoslováquia é que ela é ainda relevante hoje, porque a Europa que tentámos construir após a queda do Muro de Berlim se fundamenta num princípio: nunca mais. E para fazer valer esse princípio temos de entender que o destino da liberdade e da democracia em cada país europeu está indissociavelmente ligado ao destino de todos os outros países europeus. Como disseram os resistentes húngaros em 1956, quando os tanques soviéticos chegavam a Budapeste (noutra invasão destinada a esmagar veleidades soberanas): “Morremos pela nossa liberdade e pela Europa.” Os húngaros foram abandonados em 1956, tal como os checoslovacos o foram em 1968. A brutal realidade da Guerra Fria e da política de blocos assim o ditava. Mas a partir do momento em que a queda do Muro de Berlim possibilitou a participação destes países no projeto europeu, essa integração europeia só poderia estar baseada na tal promessa: nunca mais.

O problema presente, que pode desembocar em tragédia, é que essa promessa está a ser quebrada. Por um lado, é verdade que os países do Leste europeu têm agora melhores condições de vida (o mais prático argumento, como lembra corretamente José Milhazes, utilizado pelo Ocidente para ganhar a batalha política pelas vontades dos europeus do Leste). Mas é evidente também que se vive naqueles países um clima de retrocesso do Estado de direito e dos valores da democracia perante a indiferença geral das lideranças políticas europeias. E, tal como no período de entre guerras, essa regressão é contagiosa. Começou na Hungria, passou para a Polónia, oferece preocupação na Roménia, e por aí adiante (nos dois primeiros países os governos são de partidos conservadores; no terceiro é de um partido socialista, provando que este é um problema que afeta várias famílias políticas).

E isso leva-nos, ainda que de forma indireta, à Grécia e à sua saída do programa da troika. O que vimos da Europa na Grécia? Independentemente da análise que cada um de nós tiver sobre as origens da crise grega e sobre a forma da sua resolução, uma coisa é certa: vimos uma Europa que se preocupa muito mais com décimas de défice do que com valores democráticos fundamentais. Atenas chorou, enquanto Orbán cantou e riu ao destruir o Estado de direito em Budapeste. E esse é um erro crasso de que ainda estamos a pagar as consequências.

Até Jean-Claude Juncker já admitiu uma vez, em nome das instituições: “Pecámos contra a dignidade dos povos da Grécia, de Portugal e da Irlanda.” Mais do que confissão de pecados, importaria passar ao ato de contrição e a aprender a lição. A Europa de hoje não é felizmente igual à da invasão da Checoslováquia, como a da invasão da Checoslováquia não é igual à do Holocausto nazi. Mas enquanto a Europa de hoje não reencontrar a escala correta das suas prioridades políticas — em que a democracia, os direitos e o bem-estar social não podem deixar de ter precedência sobre a implementação cega dos dogmas de política económica — estaremos sempre em risco de voltar ao pior do nosso passado.